Salomé Lamas, a kamikaze
O seu cinema gosta de paradoxos e contradições, de armazenar experiências e de pôr perguntas que podem não ter resposta. Retrato de uma cineasta aberta ao mundo, como se vê em Eldorado XXI, que leva ao Festival de Berlim.
“Não tenho uma visão romântica do cinema. Estou mais próxima de ser um sapateiro, um praticante de um mester que tem de se dominar para que uma pessoa fique melhor à medida que o tempo vai passando.” Não é exactamente o que se esperaria ouvir de Salomé Lamas (n. 1987), cineasta que se tem mostrado interessada pela exploração dos limites, das margens, dos riscos. Eldorado XXI, a longa-metragem que leva em estreia mundial ao Forum de Berlim, foi rodada na remota aldeia peruana de La Rinconada y Cerro Lunar, a 5500m de altitude. Antes, filmou na Transdnístria (onde a equipa foi presa e interrogada pelo KGB), este ano vai estar um mês a trabalhar no Bornéu, tem um outro projecto que quer filmar no Médio Oriente, “entre o Cairo, o Dubai e Beirute”…
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“Não tenho uma visão romântica do cinema. Estou mais próxima de ser um sapateiro, um praticante de um mester que tem de se dominar para que uma pessoa fique melhor à medida que o tempo vai passando.” Não é exactamente o que se esperaria ouvir de Salomé Lamas (n. 1987), cineasta que se tem mostrado interessada pela exploração dos limites, das margens, dos riscos. Eldorado XXI, a longa-metragem que leva em estreia mundial ao Forum de Berlim, foi rodada na remota aldeia peruana de La Rinconada y Cerro Lunar, a 5500m de altitude. Antes, filmou na Transdnístria (onde a equipa foi presa e interrogada pelo KGB), este ano vai estar um mês a trabalhar no Bornéu, tem um outro projecto que quer filmar no Médio Oriente, “entre o Cairo, o Dubai e Beirute”…
Tudo isto, diz Salomé, recém-chegada da pós-produção de Eldorado XXI em França, como uma maneira de sobreviver quotidianamente, de “ter uma casa, uma vida como toda a gente, de gerir a vidinha”. Um paradoxo, assumido abertamente por uma realizadora formada em Cinema e com um mestrado em Artes Plásticas, que tem navegado entre o cinema “tradicional” e as instalações museológicas ou site-specific. “Há uma série de coisas que me atraem que têm que ver com os confins do mundo, os desterros, as margens,” explica. “Procurar os limites dos próprios formatos, seja do cinema de não-ficção, seja do que é apresentar uma mesma obra em contextos diferentes. Mas gosto de paradoxos, de conflitos. Sou alguém que procura a perda de controlo, mas precisa de ter controlo...”
Eldorado XXI é tecnicamente a segunda longa-metragem de Salomé, depois do aclamado Terra de Ninguém, melhor longa portuguesa no DocLisboa 2012, apresentada no Forum em 2013 e com um invejável percurso por festivais internacionais. Rodado na comunidade humana estabelecida em maior altitude do mundo, nos Andes peruanos, o filme começou vida como um “documentário híbrido, com uma espécie de guião”, mas divergiu para outros caminhos, “mais radical ou menos clássico do que a sua forma inicial”.
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CITACAO_CENTRAL
“Há sempre um lado de imprevisibilidade no objecto final,” explica a realizadora sobre o seu método de trabalho. “O que posso dizer é que vou a um sítio e trago de lá um filme, mas que filme é nunca sei bem enquanto não regresso. O que me interessa é termos ido à Rinconada, e eu ter estado com aquelas pessoas.” Salomé fala de um processo de “armazenar experiências” que é essencial: “Perceber de que forma outros sítios interferem contigo e como é que podes interferir com eles. Em todo o trabalho que fiz há sempre uma ideia de espera, de eu ser um corpo estranho numa realidade que já existe e que tipo de fricção isso pode criar para gerar um desenvolvimento.”
A ideia é de um cinema feito de algum modo em constante “fuga para a frente”, movido pelo que Salomé descreve como a sua “hiperactividade, quase obsessão”, com um lado quase “kamikaze” de abertura ao acidente. “Quando desenvolvo um projecto no papel, tento imaginar todos os quadros possíveis. Depois vou para o local, e é preciso reagir com um lado mais emotivo e intuitivo, porque às vezes nem sequer há tempo para pensar. Na montagem, tens de acomodar o filme para ele ter esse formato de filme, tem de haver uma estrutura, mas é bom que essa intuição, esse lado mais emotivo que vem da rodagem continue. Depois, quando está terminado, já é outra coisa. Já não és tu, o objecto ganha dimensões várias.“
É isso, por exemplo, que explica as reacções extremamente díspares geradas pela sua curta A Comunidade, premiada no Curtas Vila do Conde 2012, sobre um parque de caravanismo da Costa da Caparica. E este nunca é um cinema fechado sobre si mesmo, antes aberto às leituras que o público pode trazer, “muitas vezes em encontros com o público ou nos comentários de outras pessoas depois de o filme estar acabado”. Algo de essencial para uma cineasta que não se quer inscrever nesta ou naquela linhagem, que gere à vista a sua carreira. “Não gosto de pessoas preguiçosas”, ri-se. “Nunca gostei de ir a um museu e ver peças interactivas, que normalmente, são acompanhadas por instruções como é que se deve interagir com a peça… Interessam-me espectadores activos, quero explorar os limites que ele tem de apreciação ou de absorção, deixar o julgamento e a reflexão para o outro. No fundo, coloco questões que sejam maiores do que a minha própria pessoa e que possam transcender o espectador. Cabe a cada espectador perceber qual é a caixinha que lhe serve.”