IVO FERREIRA
Em constante viagem
À terceira longa-metragem de ficção, Cartas da Guerra, chega à competição de Berlim como um realizador sem amarras, em constante viagem
Seria demasiado fácil – e errado – pensar que a presença de Cartas da Guerra na competição oficial de Berlim tem algo de “justiça cósmica”, face aos sete anos de gestação da terceira longa-metragem de Ivo Ferreira (n. 1975). A adaptação ao cinema da correspondência entre o escritor António Lobo Antunes e a sua esposa, Maria José, durante a guerra colonial, germinou na cabeça do realizador logo após a conclusão da anterior longa, Águas Mil (2009). Mas só em 2015 entrou em rodagem, na sequência do célebre “ano zero” do cinema português que congelou a verba atribuída por concurso ao filme em 2010. “Entre o Águas Mil e este filme poderia ter acontecido um tempo relativamente normal,” explica Ferreira, num intervalo da finalização de Cartas da Guerra, primeira adaptação de material pré-existente pelo realizador (os filmes anteriores eram originais). A necessidade de “afastar” o resultado final da “marca” Lobo Antunes – de autonomizar o filme da obra que lhe deu origem – era essencial: “Não existia nenhuma organização dramatúrgica [no material] e isso foi uma das coisas que me permitiu pegar, podia fazer o que quisesse. A escrita foi bastante feliz, mas depois veio o pesadelo do financiamento atrasado, o colapso do sistema, que não era suposto ter havido...”
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Seria demasiado fácil – e errado – pensar que a presença de Cartas da Guerra na competição oficial de Berlim tem algo de “justiça cósmica”, face aos sete anos de gestação da terceira longa-metragem de Ivo Ferreira (n. 1975). A adaptação ao cinema da correspondência entre o escritor António Lobo Antunes e a sua esposa, Maria José, durante a guerra colonial, germinou na cabeça do realizador logo após a conclusão da anterior longa, Águas Mil (2009). Mas só em 2015 entrou em rodagem, na sequência do célebre “ano zero” do cinema português que congelou a verba atribuída por concurso ao filme em 2010. “Entre o Águas Mil e este filme poderia ter acontecido um tempo relativamente normal,” explica Ferreira, num intervalo da finalização de Cartas da Guerra, primeira adaptação de material pré-existente pelo realizador (os filmes anteriores eram originais). A necessidade de “afastar” o resultado final da “marca” Lobo Antunes – de autonomizar o filme da obra que lhe deu origem – era essencial: “Não existia nenhuma organização dramatúrgica [no material] e isso foi uma das coisas que me permitiu pegar, podia fazer o que quisesse. A escrita foi bastante feliz, mas depois veio o pesadelo do financiamento atrasado, o colapso do sistema, que não era suposto ter havido...”
Ferreira podia ter desistido – “não sei se uma pessoa desiste mais facilmente por filmar ou não filmar” – mas em vez disso, como diz com um sorriso, “pirei-me”. Regressou a Macau, onde já tinha vivido, com a esposa, a actriz Margarida Vila-Nova, e os dois filhos, e construiu uma “segunda vida”: abriu uma mercearia portuguesa, ajudou a montar a produtora Inner Harbour… Cartas da Guerra ficou em animação suspensa. “Não vou ficar no Bairro Alto a queixar-me do filme maravilhoso que tinha para fazer. Não consigo, fico enervadíssimo com isso,” explica. “Nem levei um argumento impresso para Macau. Se tivesse vivido este tempo todo a retrabalhá-lo, estaria farto do filme e de mim. Não quero pensar que somos dependentes de um júri do ICA, ou da televisão ou do que for. Faz parte de uma tentativa de liberdade, de uma segunda vida.”
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CITACAO_CENTRAL
Essa liberdade é consentânea com a liberdade pela viagem que é tema recorrente no cinema de Ivo Ferreira. A sua estreia na longa, Em Volta (2002), era literalmente um road movie em viagem pelo mundo em busca de uma identidade; Águas Mil viajava pelo tempo e pelo espaço, à volta dos segredos do 25 de Abril; as curtas e médias que rodou em Macau e na China, Vai com o Vento (2010), O Estrangeiro (2010) e Na Escama do Dragão (2012), reflectiam esse fascínio pelo outro, pela sua cultura, pela sua pessoa. “Dá-me muito prazer estar com o outro,” define. “Posso estar em Angola a beber uma cerveja ao lado de alguém que não me está a dizer nada de especial, mas essa experiência pode ser enriquecedora de alguma forma. Quando vou falar com alguém sobre um certo assunto, o que vou retirar dessa conversa não é apenas o que essa pessoa está a dizer; o que fica comigo é a experiência no seu todo, a sua voz, a sua expressão, a sua corporalidade.”
Cineasta “sem amarras”, desprendido no sentido de partir para encontrar outras possibilidades, Ferreira é fascinado por outras vidas. Talvez venha do facto de ser filho de actores e de ter crescido entre ensaios e bastidores, a ver personagens a ganhar corpo entre cenários em construção ou à mesa da sala. ”Nunca tinha pensado nisso assim, mas é possível. Há quem se mantenha dentro de um quarto e a partir daí cria todo um mundo. Eu não sou assim, preciso de estar com as pessoas, de ver as paisagens, as árvores.” Exemplifica com a necessidade de rodar Cartas da Guerra, o percurso de um alferes médico durante uma comissão de serviço na guerra colonial, nas próprias paisagens africanas. “Nem me passava pela cabeça fazer este filme se não fosse filmá-lo a Angola. Não tenho a capacidade fantástica de abstracção que me permitiria fazer tudo em Alcochete a fingir que era África, e era impossível pensar como é que o filmaria antes de fazer repérages. Vivo muito das coisas que estão a acontecer, e as ideias que encontro vêm em parte do contacto com o que está à minha volta. Mesmo uma viagem terrível de autocarro, em que estás com a cabeça encostada a um vidro que abana, é absolutamente estimulante, mesmo que incómoda.”
Pelo meio da longa gestação de Cartas da Guerra – filmado em tempo recorde: “estávamos exactamente há um ano a fazer a primeira repérage e agora estamos em Berlim” – Ivo Ferreira não parou: há uma outra longa escrita e financiada, cuja rodagem vai atrasar devido à selecção para Berlim, e o filme a seguir também já está alinhavado. Tudo a partir de um processo de criação intuitivo: “parto de uma vontade, de uma pulsão que às vezes me acompanha há muito tempo e sobre a qual vou reflectindo.” E que tem sempre a ver com a vida.