O Museu Nacional de Taiz é a baixa mais recente na guerra no Iémen
Património do país tem vindo a ser destruído desde que o conflito começou. Quase 50 sítios com interesse histórico foram já apanhados no fogo cruzado entre os huthis e a coligação internacional que a Arábia Saudita chefia.
Os bombardeamentos da coligação internacional no norte do Iémen têm vindo a intensificar-se nos últimos dois meses, escreve o diário norte-americano The New York Times, que é o mesmo que dizer desde que se deu por falhada mais uma ronda de negociações para acabar com a guerra civil.
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Os bombardeamentos da coligação internacional no norte do Iémen têm vindo a intensificar-se nos últimos dois meses, escreve o diário norte-americano The New York Times, que é o mesmo que dizer desde que se deu por falhada mais uma ronda de negociações para acabar com a guerra civil.
As forças que lutam desde Março de 2015 em nome do Governo do Iémen no exílio tentam recuperar Saana aos rebeldes huthis, com ligações à Al-Qaeda e ao autoproclamado Estado Islâmico, que se concentram também em Taiz, no sudoeste, tentando controlar aquela que é a terceira cidade do país, a 330 km da capital. É precisamente aí que um ataque destruiu recentemente o Museu Nacional, que tinha à sua guarda uma importante colecção de manuscritos e outros artefactos.
Os relatos a atribuírem responsabilidade neste ataque a uma e outra partes do conflito divergem, com uns jornais e sites noticiosos a acusarem os huthis e outros a apontarem o dedo às tropas fiéis à coligação no terreno.
A agência de notícias Associated Press, por exemplo, diz simplesmente que foi bombardeado pelos militantes huthis, ao passo que um dos representantes dos extremistas se justifica garantindo que aqueles a que chama “rebeldes” — os pró-coligação — transformaram o museu numa das suas bases militares, sendo por isso culpados do bombardeamento que o destruiu. “A resistência é responsável pelo incêndio no museu, já que os seus combatentes disparam sobre os huthis a partir do museu”, disse um líder dos extremistas que não quis identificar-se ao site de informação Middle Eastern Eye, explicando que muitos dos que lutam contra as forças que apoiam o Presidente Abd Mansour Hadi são da província de Taiz e que não destruiriam sem motivo a sua própria história.
Esta é mais uma baixa de peso no património iemenita, que tem vindo a ser arrasado pelo conflito entre a coligação liderada pela Arábia Saudita e os rebeldes do Norte, extremistas islâmicos, cujo fogo cruzado já afectou 47 sítios com interesse histórico, segundo os dados do instituto governamental encarregue da salvaguarda das antiguidades, museus e manuscritos, citados pela publicação especializada The Art Newspaper.
Entre eles estão três bens considerados património mundial: a cidade velha de Saana, intensamente bombardeada em Junho passado, Zadib, capital do Iémen entre os séculos XIII e XV, e Shiban, a que chamam a “Manhattan do deserto” por causa das suas torres construídas há 400 anos.
As imagens que chegam dos fotógrafos a trabalhar para as agências noticiosas em Taiz mostram galerias totalmente destruídas, com homens das forças leais ao Presidente a caminharem entre os escombros, procurando, muito provavelmente em vão, recuperar alguns objectos, livros e outros documentos, alguns com mais de mil anos.
É tudo política
Se a situação é tão grave, como garantem os relatórios e comunicados da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), por que razão se fala tão pouco no Ocidente da destruição do património no Iémen? Para Samir Badulac, que dirige o grupo do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) encarregue da salvaguarda da herança cultural da Síria, do Iraque e dos países vizinhos, a explicação é política. É que a coligação encabeçada pela Arábia Saudita, cujos ataques aéreos têm sido devastadores, é apoiada pelo Ocidente (os militantes huthis pelo Irão). Além disso, sublinha este dirigente do Icomos ao Art Newspaper, “o património iemenita não faz lembrar a antiguidade clássica, ao contrário de Palmira [um dos principais sítios arqueológicos sírios]”, cuja destruição mereceu grande atenção das televisões e jornais em todo o mundo.
A coligação internacional, garante à mesma publicação Anna Paolini, directora dos escritórios da UNESCO no Qatar, que representam o Iémen e os estados árabes do Golfo, tem à sua disposição todos os dados de que precisa sobre o património: “Foi informada, desde o começo da guerra, sobre todos os sítios a evitar, com as coordenadas fornecidas pela própria UNESCO.”
Alguns dos sítios com interesse patrimonial já severamente afectados, como a fortaleza medieval de Taiz, têm interesse estratégico, neste caso para os fundamentalistas huthis, mas outros, como o campo arqueológico da cidade pré-islâmica de Baraquish, no noroeste do país, cujos templos e murais foram restaurados pouco antes da guerra, podem ter sido apenas danos colaterais, precisa Paolini, que acusa a Arábia Saudita de nunca justificar o porquê do ataque a sítios que sabe terem valor histórico.
Entre a comunidade de arqueólogos e historiadores há quem vá mais longe e acredite que a coligação liderada pelos sauditas está propositadamente a atingir o património iemenita. A arqueóloga Lamya Khalidi está entre eles e, para dar exemplos dessa atitude deliberada, cita o ataque à barragem da antiga cidade de Marib, uma construção do século VIII a.C. que foi considerada um dos grandes feitos tecnológicos do mundo antigo: “Está numa zona de deserto. Aqueles que conhecem o Iémen como eu conheço sabem que [este ataque em Maio] não pode ter tido qualquer interesse estratégico, e que ninguém poderia esconder lá alguma coisa”, explicou também ao Art Newspaper, acrescentando que a Arábia Saudita dispunha das coordenadas do sítio e que, por isso, não pode tê-lo atingido por acidente.
A organização do Estado responsável pelos sítios históricos está a tentar reunir 3,8 milhões de euros através da comunidade internacional para restaurar 113 casas atingidas pelos bombardeamentos em Saana, no Verão. A cidade, lembra a UNESCO num dos comunicados divulgados ao longo dos últimos meses, é habitada há mais de 2500 anos e a sua riqueza patrimonial e religiosa reflecte-se em 103 mesquitas, 14 banhos públicos (o tradicional hamam) e seis mil casas, na sua esmagadora maioria construídos antes do século XI.