Serviço Nacional de Saúde e evidência científica
Não é um problema de modelo ou de gestão, mas sim de política da tutela. Se for subfinanciado, o sector privado também vai à falência.
Num contraditório artigo [PÚBLICO, 26/01/2016], onde não desmente ter anteriormente publicado números falsos, o Prof. Rui Albuquerque (RA), sem o conseguir, procurou contraditar o meu texto “O melhor SNS do mundo” [Público, 24/11/2015], cuja releitura recomendo. Os dados por mim citados constam do relatório Health at a Glance 2015. OECD indicators, que qualquer um pode consultar.
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Num contraditório artigo [PÚBLICO, 26/01/2016], onde não desmente ter anteriormente publicado números falsos, o Prof. Rui Albuquerque (RA), sem o conseguir, procurou contraditar o meu texto “O melhor SNS do mundo” [Público, 24/11/2015], cuja releitura recomendo. Os dados por mim citados constam do relatório Health at a Glance 2015. OECD indicators, que qualquer um pode consultar.
Agora, até na citação que faz do World Health Report 2000, da OMS, RA falta ao rigor! De facto, na página 200, no indicador “Desempenho global do Sistema de Saúde”, que conjuga resultados e eficiência e constitui o parâmetro mais global de avaliação, Portugal está em 12º lugar, a Suíça num modesto 20º, a Alemanha em 25º e os EUA em 37º. Este relatório da OMS, muito comentado na altura, permitiu precisamente tecer rasgados elogios ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) português. RA citou um parâmetro menos abrangente...
RA fala em “fé” quando afirmo que “não há evidência científica de que, em Saúde, a gestão privada seja melhor que a pública”. Perdoo-lhe a ignorância, recordo-lhe que sou um homem de ciência e aqui vai a competente referência bibliográfica: Basu S et al. “Comparative Performance of Private and Public Healthcare Systems in Low-and Middle-Income Countries: A Systematic Review”. PLoS Med, 2012; 9.
Há mais bibliografia científica que confirma esta realidade. Por falta de espaço apresento apenas mais cinco referências.
- Scally G. BMJ, 2015; 350: h289. Depois da experiência de Hinchingbrooke, este autor afirma que “a evidência demonstra que os serviços públicos geridos pelo sector privado são inferiores aos serviços públicos do SNS”.
- Kmietowicz Z. BMJ, 2015; 350: h2184. As conclusões de um estudo inglês são inequívocas: “A qualidade dos cuidados no SNS em Inglaterra pode sofrer com o influxo de prestadores do sector privado e social, depois de se concluir que estes prestadores alternativos de Cuidados de Saúde Primários têm um pior desempenho que os prestadores tradicionais numa ampla gama de indicadores”.
- No EUA, o desperdício em Saúde, um sistema baseado em seguros e prestadores privados, representa um terço da despesa em Saúde (Berwick D, Hackbarth A. JAMA 2012; 307: 1513).
- A curiosa experiência da China mostra como “a Saúde está sujeita a sérias falhas dos mecanismos de mercado” (Blumenthal D, Hsiao W. NEJM, 2015; 372: 1281).
- A prática demonstra como o mercado privado da saúde é anti-competitivo, em prejuízo dos doentes (Hawkes N. BMJ, 2012; 344: e2606).
Não é por acaso que uma Comissão Presidencial Chilena recomendou recentemente que o país regressasse a um modelo de pagador único com um seguro público universal de Saúde; os doentes com seguros privados vêm diminuindo progressivamente por causa do contínuo aumento dos prémios dos seguros (Bossert T, Leisewitz T. NEJM, 2016; 374: 1). O SNS português, financiado por impostos, é precisamente um modelo de seguro público universal com prestador essencialmente público.
Na mesma linha, a reforma dos Cuidados de Saúde Primários do Ontário, Canadá, com as suas peculiaridades, demonstrou que as organizações de médicos assalariados, a filosofia do sistema público, prestam um melhor serviço do que os prestadores com pagamento por acto, a filosofia do sistema privado (Lewis S. NEJM, 2015; 372: 497).
Numa flagrante contradição, RA critica o nosso SNS por insuficiência de resposta, ‘obrigando’ os portugueses a pagar directamente do seu bolso uma percentagem das despesas em Saúde superior à média da OCDE, o que, infelizmente, é verdade, devido às decisões políticas dos últimos quatro anos. Porém, RA preconiza não um reforço do financiamento e resposta do SNS, para este recuperar a sua Qualidade, mas sim que os portugueses paguem ainda mais para o sector privado! No clímax da confusão, RA defende algo que não é ciência nem ninguém sabe o que é (talvez fé...), “um financiamento mitigado” (sic) do SNS! Sem comentários...
Recordo a frase de Bill Clinton, “é a economia, estúpido”, para dizer que a (insuficiente) despesa pública em saúde de 6% do PIB português, que referi no meu artigo, não é uma questão de fé ou orçamento previsional! RA diz que não “crê” nos 6% (afinal ele é dado a crenças...), mas permito-me lembrar-lhe que quem o afirma, tendo em conta todas as despesas, “é o relatório da OCDE de 2015, ...”.
Sublinhe-se o quão hipócrita e falacioso é dizer que os hospitais públicos estão em falência técnica. Sendo o Estado o único accionista, a situação financeira dos hospitais depende do financiamento e das decisões do Ministério da Saúde; se o Estado cortar à Paulo Macedo, como cortou, ficam (quase) todos em falência técnica e a resposta do SNS piora (com natural e inevitável reflexo no Euro Health Consumer Index), acontecendo o inverso se o Estado melhorar o financiamento! Ou seja, não é um problema de modelo ou de gestão, mas sim de política da tutela. Se for subfinanciado, o sector privado também vai à falência.
Finalmente, uma palavra para lembrar que Nigel Crisp sempre defendeu que nos devemos orgulhar do nosso SNS. O relatório da Gulbenkian refere: “Parece existir uma concordância generalizada a favor de que o SNS continue a ser essencialmente financiado pelos impostos e acessível de forma equitativa e universal a toda a população”.
Quero reafirmar que nada me move contra os sectores privado e social. Respeito-os, são importantes para a prestação do nosso Sistema Nacional de Saúde e devem coexistir, com transparência, para quem a eles queira recorrer. O que não posso tolerar é que, mentirosamente, se pretenda denegrir o SNS para abrir caminho na opinião pública ao seu progressivo emagrecimento artificial, alargando o espaço das multinacionais da Saúde, com prejuízo da qualidade global da Saúde em Portugal e aumento dos custos para os doentes.
Termino informando que não vale a pena voltar a responder a RA. Escrevi este artigo, reafirmando o anterior, para o correcto esclarecimento técnico dos leitores do PÚBLICO, que me merecem todo o respeito.
Bastonário da Ordem dos Médicos