Cães ressentidos
Os Oito Odiados vê-se como um filme que fala da América como um mar de ressentimentos não-resolvidos: os brancos e os negros, os mexicanos, as mulheres, os nortistas e os sulistas.
Todos os sinais lá estavam, desde o Madonna rap que abria o seu primeiro filme, Cães Danados, mas foram-se intensificando, e hoje, em 2016, não se encontra no cinema americano nenhum outro cineasta que trabalhe, como Tarantino trabalha, a palavra dita, a oralidade, no que ela pode comportar em termos de um “significado” mas também enquanto ruído, mais ou menos musical.
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Todos os sinais lá estavam, desde o Madonna rap que abria o seu primeiro filme, Cães Danados, mas foram-se intensificando, e hoje, em 2016, não se encontra no cinema americano nenhum outro cineasta que trabalhe, como Tarantino trabalha, a palavra dita, a oralidade, no que ela pode comportar em termos de um “significado” mas também enquanto ruído, mais ou menos musical.
Questionou-se (e questiona-se) muito a dimensão frequentemente irrisória dos diálogos de Tarantino – o seu lado “pop”, o seu lado “ostensivo” – quando isso é o menos importante: o que conta é a maneira como eles condensam e depois descarregam a energia que alimentam partes substanciais dos seus filmes. É o ruído de um trovão, se quisermos, cheio de som e de fúria mas não necessariamente significando alguma coisa. Shakespeare, pois: em Os Oito Odiados, filme onde Tarantino se aproxima mais do “teatro” do que alguma vez, passamos boa parte do tempo a pensar nele, e certamente que Tarantino também, pela estrutura, pelos monólogos, pelo humor, por temas como o da vingança, e finalmente pela violência, guignolesca, sanguinolenta, sobretudo no climax, que causa engulhos em muita gente mas que não é muito diferente, em termos de natureza, da de peças como Tito Andrónico, e a sua quase paródica carnificina final. (Não, não: ninguém está a comparar Tarantino a Shakespeare, apenas, o que parece inegável, que não há outro cineasta na actualidade onde Shakespeare esteja tão presente – cruzado com o século XX, com os monólogos delirantes e drogados de Burroughs, com as canções torrenciais de Dylan, com a raiva autista de um MC de hip hop).
Os Oito Odiados é, pelo menos, o filme de Tarantino mais fácil de imaginar enquanto peça teatral. Há basicamente dois décores: a diligência, na sequência preambular, e depois a estalagem (a “retrosaria da Millie”) onde se passa o essencial da duração do filme. Há dois flash-backs (muito menos que nos Cães Danados, ainda assim o modelo mais próximo deste filme), mas um deles, a história da vingança da personagem de Samuel L. Jackson sobre o filho do general sulista (Bruce Dern) pode nem ser bem um flash-back, antes uma alucinação, a reconstituição visual que o general faz a partir do relato de Jackson (sequência, aliás, que o dedo de Tarantino para o tempero dramático apura genialmente, com a personagem que, ao piano, interpreta uma versão mais do que imperfeita de uma canção de Natal, a fazer de banda musical “diegética”). O outro flash-back, mais perto do fim, justifica-se pela narrativa, mas seria mero truque de “construção” se não servisse para relevar alguns detalhes até então omitidos (por exemplo, a cor de pele de Millie, personagem que na narrativa “em directo” é ausente, não vista).
Tem-se falado da ironia – para alguns desapontante - do facto de Tarantino usar o ecrã largo (e os 70mm, que não serão vistos nas cópias da distribuição portuguesa) para encafuar as personagens em espaços fechados, sem horizonte, sem “paisagem”. Quanto a nós é uma das coisas brilhantes do filmes, e nem sequer é inédita, o que não faltam são exemplos de grandes filmes e grandes cineastas que se serviram do scope para o contrariar, para sublinhar a negação do espaço mais do que para o oferecer (por exemplo John Carpenter, que, via Veio do Outro Mundo, até tem sido referido, com algum cabimento, a propósito de Os Oito Odiados). Em todo o caso, a maneira como Tarantino faz sentir o espaço é brilhante: a sensação (para o espectador) é quase física, por exemplo quando, à chegada à estalagem, a escala de planos muda, e passamos dos campos/contracampos cerrados das cenas na diligência, para um espaço mais largo e horizontal, o décor da estalagem, dir-se-ia pensado para o formato do scope (com muito “lado” e pouca “altura”), espaço que a câmara de Tarantino percorre demoradamente nesses primeiros minutos, quer como “brinde” (uma oportunidade para desentorpecer as pernas, como se espectador também viajasse na diligência atravancada) quer como cuidadoso desenho e reconhecimento do espaço que será doravante o da acção.
Acção que é, sobretudo, repetimos, a acção das palavras, conduzidas no limite da tensão. O bricabraque de Tarantino pega no ponto em que ficara no filme anterior (Django Libertado), com o tempo do western e a questão do racismo na superfície. Mas vai mais além, Os Oito Odiados vê-se como um filme que fala da América como um mar de ressentimentos não-resolvidos: os brancos e os negros, os mexicanos, as mulheres, os nortistas e os sulistas. A “retrosaria da Millie” é o caldeirão onde este ressentimento coze em lume brando durante duas horas e tal, e depois transborda. Se o compararmos com as notícias que vamos lendo sobre a América, as tensões que a pré-campanha presidencial tem acicatado, o estado de conflituosidade étnica (ver a polémica dos Óscares, por exemplo), não nos parece que, mesmo no seu modo teatral exacerbado, seja um filme contrariado pela realidade. Em todo o caso, também por isso, não nos parece um filme que seja possível ignorar.