O regresso da ansiedade
Anda no ar um indisfarçável desejo de que a Comissão Europeia, os mercados ou qualquer outro arauto da justiça universal punam o Governo pelos seus desmandos em matéria orçamental.
No meio de tanto entusiasmo com a aflição de António Costa, com o buraco na credibilidade de Mário Centeno e com a desgraça da perda da credibilidade externa do país, confundem-se cartas protocolares com vergastadas públicas, metem-se no mesmo saco documentos preliminares e propostas finais e dá-se largas ao festim que já conseguiu retirar ao Governo o tradicional estado de graça dos primeiros cem dias. Porquê? Principalmente porque o Governo e o seu primeiro-ministro tudo fizeram para montar a armadilha em que agora se encontram. Foram eles quem escreveu o guião que determina as regras do seu julgamento, ao tentarem o equilíbrio improvável entre o fim da austeridade e o cumprimento das regras europeias. O nervosismo, o exagero e por vezes até a manipulação dos factos servem para mostrar ao mundo que, afinal, António Costa está cercado porque acreditou um dia que jamais se deixaria cercar.
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No meio de tanto entusiasmo com a aflição de António Costa, com o buraco na credibilidade de Mário Centeno e com a desgraça da perda da credibilidade externa do país, confundem-se cartas protocolares com vergastadas públicas, metem-se no mesmo saco documentos preliminares e propostas finais e dá-se largas ao festim que já conseguiu retirar ao Governo o tradicional estado de graça dos primeiros cem dias. Porquê? Principalmente porque o Governo e o seu primeiro-ministro tudo fizeram para montar a armadilha em que agora se encontram. Foram eles quem escreveu o guião que determina as regras do seu julgamento, ao tentarem o equilíbrio improvável entre o fim da austeridade e o cumprimento das regras europeias. O nervosismo, o exagero e por vezes até a manipulação dos factos servem para mostrar ao mundo que, afinal, António Costa está cercado porque acreditou um dia que jamais se deixaria cercar.
Muito mais do que a discussão sobre um orçamento, a avaliação das acções de António Costa nas últimas duas semanas deu lugar a alegações finais próprias de um julgamento em que a palavra, a idoneidade e, principalmente, o realismo do Governo estão em jogo. Mais do que um combate em que se esgrimem números, previsões e ideias sobre como libertar a economia e criar empregos, o que se pretende afinal saber é se o pequeno David de Lisboa vai impor as suas teses ao Golias de Bruxelas, como tão ufanamente se prometeu durante a campanha eleitoral. Por isso, para boa parte da imprensa, cada ameaça de uma agência de rating é uma bala, cada subida decimal dos juros da dívida no mercado secundário uma emboscada, cada carta da Comissão Europeia uma faca encostada à garganta do Governo. Não é mais um orçamento suspeito ou condenado a falhar, como o foram em regra os orçamentos de Passos Coelho; é o juízo final sobre a consistência política de Costa e sobre a viabilidade das suas contradições.
Perante tão crucial batalha, não admira que as facções, os interesses ou as ideologias se tenham eriçado de forma tão sublime. Da direita escutam-se advertências, coleccionam-se críticas das organizações internacionais e os mais ousados falam já de um segundo resgate ou, pior ainda, da possibilidade de ninguém querer resgatar outra vez esta desgraçada nação que nem se governa nem se deixa governar. Da esquerda extrema ouvem-se protestos contra a ingerência, lançam-se pedidos a António Costa para que não se submeta, recupera-se a dimensão mística da Pátria, fazem-se juras de que Portugal pode marchar contra os credores como outrora marchou contra os canhões. No meio de tudo isto, a ansiedade e o medo do futuro próximo regressaram às conversas de rua e instalaram-se nas preocupações do quotidiano. O pior mal dessa tentativa fútil de “virar a página à austeridade” constata-se no ânimo dos portugueses, que receiam regressar a um tempo de angústia que julgava definitivamente ultrapassado.
Para nossa sorte, Costa e os seus ministros não se mostram muito dispostos a fazer de Condestável para satisfazer o "mata e esfola" do Bloco e do PCP. Mas, para nosso azar, estes não dão sinais de querer entender que, nas circunstâncias actuais, ou se cumprem as metas orçamentais acordadas com os parceiros europeus ou se entra num conflito de consequências imprevisíveis. É neste dilema que Costa se encontra. O candidato que prometeu reverter a austeridade não se entende com o candidato que jurou cumprir o Pacto de Estabilidade e Crescimento. O primeiro-ministro que tenta a todo o custo ser decente e cumpridor da palavra dada aos eleitores (uma questão de honra, como tantas vezes disse), não sabe como fazê-lo sem arrebentar com o fio ténue que nos liga à Europa e aos que nos emprestam dinheiro para boiar. E é neste limbo de hesitação entre uma e a outra faceta da sua personalidade política que António Costa se desgasta e se expõe às críticas da oposição, dos partidos que ainda o apoiam, das agências de rating, de Bruxelas, da Comissão das Finanças Públicas, enfim, de todo o mundo.
Não se espere que as coisas melhorem. O Governo há-de tentar a custo manter este balanço instável, há-de tentar aplacar a leviandade demagógica da esquerda extrema ou o oportunismo da CGTP, há-de tentar poupar uns euros em ideias mirabolantes como a que vai separar a factura do restaurante em comida, bebida ou numa terceira via do menu. Mas António Costa dificilmente ficará bem na fotografia. Se mantiver as suas metas de crescimento eufóricas e as expectativas de receitas e de despesas delirantes e, principalmente, se insistir em torturar os números para darem o défice estrutural que ele deseja, vai ter de enfrentar um conflito com as instituições externas; se ceder e quiser cumprir as obrigações do estado em sede do Pacto de Estabilidade e Crescimento vai ter de adoptar medidas de austeridade, estatela-se na opinião pública e leva o Bloco e o PCP para a oposição. A face de António Costa que honra as suas promessas não encaixa na outra face de António Costa que subscreve o rumo europeu sufragado pela maioria dos portugueses nas eleições de 4 de Outubro.
Temos em mãos a factura de um pecado original. Como qualquer cidadão com um mínimo de hábito de leitura de jornais tinha compreendido, um país que precisa todos os anos de empréstimos para financiar o défice e para se manter à tona não pode desfraldar na bandeira do fim da austeridade apenas porque a austeridade se transformou num dogma ideológico - quando devia ser, aos olhos da esquerda, uma exigência ética destinada a proteger os mais pobres e desfavorecidos. Um país com uma dívida gigantesca, um crescimento anémico e uma situação social aflitiva não pode desatar a distribuir feriados, horários simpáticos e alívios fiscais – o mesmo não se pode dizer dos salários e das pensões. António Costa está tão amarrado aos cálculos do défice e da dívida como esteve Passos Coelho. Não é uma ironia do destino, é a realidade do país. Só que nesta continuidade, há uma diferença fundamental: Se antes o país sofria com a ansiedade de saber até onde o alinhamento de Passos levaria os seus sacrifícios, agora sofre com a indecisão e com a incerteza.
Talvez os mais devotos na fé do poder ilimitado da política ou os crentes de que tudo isto não passa de uma conspiração tenham finalmente percebido que o mal não está nem em Passos nem em Costa; está na crueldade da dívida e na dependência que temos de terceiros para mantermos o país a funcionar. Enquanto não formos capazes de encarar o problema de frente, não haverá maquilhagem orçamental nem bravatas patrioteiras contra as ingerências externas capazes de nos salvar.