Nesta casa cabem todos – dois dias de teatro e conversas no São Luiz

Este fim-de-semana, o Teatro São Luiz, em Lisboa, é ocupado por uma extensa programação da manhã à noite concebida por Anabela Mota Ribeiro e André e. Teodósio. Estar em Casa é para todos.

Foto
Anabela Mota Ribeiro e André e. Teodósio “ocupam” o Teatro São Luiz este fim-de -semana Miguel Manso

Consta que o dramaturgo inglês Noel Coward tinha por hábito dizer aos seus actores: “age naturalmente e não tropeces na mobília”. André e. Teodósio, elemento do Teatro Praga, recupera essa citação para contrapor aquilo que o guia e à jornalista Anabela Mota Ribeiro na concepção do programa Estar em Casa: “Nós agimos artificialmente e tropeçámos na mobília de propósito.” Ou seja, no vasto cardápio que consta da “ocupação” que os dois pensaram para o Teatro São Luiz, em Lisboa, durante este fim-de-semana, há uma quase interminável sucessão de interpelações ao público inspiradas pelo conceito lato de “casa”. Encalhar no mobiliário era mesmo obrigatório.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Consta que o dramaturgo inglês Noel Coward tinha por hábito dizer aos seus actores: “age naturalmente e não tropeces na mobília”. André e. Teodósio, elemento do Teatro Praga, recupera essa citação para contrapor aquilo que o guia e à jornalista Anabela Mota Ribeiro na concepção do programa Estar em Casa: “Nós agimos artificialmente e tropeçámos na mobília de propósito.” Ou seja, no vasto cardápio que consta da “ocupação” que os dois pensaram para o Teatro São Luiz, em Lisboa, durante este fim-de-semana, há uma quase interminável sucessão de interpelações ao público inspiradas pelo conceito lato de “casa”. Encalhar no mobiliário era mesmo obrigatório.

A casa não é deles, claro, mas é como se fosse. Estar em Casa equivale, talvez, a um acesso às cabeças de Anabela e André na dicionarização particular que fazem da palavra “casa”. Uma palavra que tanto pode significar lugar de família, de amor e de protecção, quanto espaço arquitectónico, vida partilhada, animais, plantas, alicerces, subterrâneos, local de trabalho, “coisas para além de simplesmente comer, dormir e estar sentado na sala”, balizam. No fundo, tudo aquilo de que se foram lembrando e acumularam sem freios desde que tiveram carta-branca do São Luiz para encher cada recanto do teatro. Só nas reuniões técnicas preparatórias é que se aperceberam da magnitude deste “acto de amor e de partilha” para o qual foram chamando mais e mais cúmplices. “Houve uma resposta tão generosa e tão avassaladora à nossa ideia que, tudo somado, temos 170 pessoas envolvidas, desde artistas e participantes a equipa técnica”, espanta-se a jornalista.

Assim, desde as 10 da manhã até à meia-noite de sábado e domingo, das aulas em que António Guerreiro, Elisa Ferreira, Nuno Artur Silva, Rui Cardoso Martins ou Rui Tavares trocarão por e para miúdos as ideias de casa, economia, maluquice, palavras e Europa, respectivamente, até ao concerto em que Sérgio Godinho (acompanhado por Filipe Raposo) revisitará a sua obra pensando como se relaciona com a vida doméstica, os espaços do teatro acolherão uma ininterrupta programação variada, tendencialmente gratuita (só os espectáculos da noite terão um preço reduzido). “Queremos este espaço totalmente aberto, um espaço onde cabem todos – cães, crianças, pessoas que não têm corpos arianos ou de acordo com a eficácia que a sociedade exige”, comenta Teodósio.

Casa de portas abertas

Apresentando-se como anfitriões, disponíveis para receber ou limpar algum copo de vinho que tome o caminho do chão, Anabela e André querem, acima de tudo, cuidar de múltiplas ofertas que possam “ser o motor para um questionamento sobre o sentimento de casa”. Não é um “Tomem lá e recebam este mundo sem-fim que pesa imenso sobre as vossas costas”, argumenta ela. Ele acrescenta que “a programação não visa tentar confirmar aquilo que as pessoas já vêm ver”.

Até porque se os espectáculos agendados de Mónica Calle, Plataforma 285, Teatro Praga, Cão Solteiro ou João Fiadeiro poderão não constituir surpresa para algum público, há uma boa dose de inesperado nas cartas de amor escritas ou desenhadas à medida do espectador (“um amor ficcional, um amor real ou um amor-próprio”, sugere Teodósio) por escritores ou artistas plásticos, nos ateliers infantis de João Fazenda e Catarina Sobral e nas visitas guiadas ao teatro pela fadista Gisela João, pela directora do São Luiz Aida Tavares ou pela agente imobiliária Cátia Nunes. Sobre aquilo que se passará em cada um dos momentos de Estar em Casa, André e Anabela pouco sabem em concreto. Depois dos convites, retiraram-se de cena.

Imperativa é a abertura das portas a um público que, por razões económicas (não ter com que pagar os espectáculos) ou familiares (não ter com quem deixar as crianças), se veja habitualmente impedido de assistir a uma peça de teatro como Rua de Sentido Único, de Mónica Calle, ou Terceira Idade, do Teatro Praga. Ou impossibilitado de assistir a conversas temáticas como O que é que faz com que uma casa seja um lar? (Miguel Vale de Almeida, Tatiana Salem Levy e Miguel Lobo Antunes, moderação de Joana Gorjão Henriques [jornalista do PÚBLICO]) ou A Política e o mundo à mesa (Bárbara Reis [directora do PÚBLICO], José António Pinto Ribeiro e João Constâncio, moderação de Paulo Pena [jornalista do PÚBLICO]). A ideia é sempre a da livre circulação de pessoas neste espaço a que Teodósio chama “um centro não comercial”. “Pensámos muito no dinheiro [por isso é grátis] quando imaginámos esta programação”, diz Mota Ribeiro, “porque é importante que chegue às pessoas e que, quando voltarem às suas casas, possam ir um pouco desinquietadas.”

Teodósio não esconde que a programação está muito próxima das “escolhas laborais, amizades ou interesses” de ambos, precisamente por se tratar de uma tentativa de replicação das suas casas no espaço do São Luiz, chamando para a intimidade pessoas ou projectos a que acreditam ser devido “um espaço de exposição das suas ideias”.  “É claro que tínhamos de encontrar nos seus trabalhos, nos seus discursos ou nos seus percursos qualquer coisa que coincidisse com os nossos interesses”, acrescenta.

E são esses interesses que veremos a ganhar vida. Como se, à semelhança do que acontece em Rosa Púrpura do Cairo, filme de Woody Allen que faz parte da “casa” de Anabela Mota Ribeiro, essas vontades saíssem da tela, avançassem e contaminassem a vida real.