O cromossoma Y poderá ser inútil para a reprodução masculina

Sabe-se que este pequeno bocado de ADN é importante para a saúde dos homens. Mas, pelo menos no ratinho, parece ser totalmente redundante em termos reprodutivos.

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Um dos ratinhos machos sem cromossoma Y Amanda Shell

O cromossoma Y é a quintessência do género masculino. Só os machos o possuem e inclui genes muito importantes para a reprodução. Mas agora, uma equipa de cientistas dos EUA e de França acaba de obter, no ratinho, resultados que parecem pôr seriamente em causa esta função fundamental do cromossoma Y – pelo menos quando se utilizam técnicas de reprodução assistida.

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O cromossoma Y é a quintessência do género masculino. Só os machos o possuem e inclui genes muito importantes para a reprodução. Mas agora, uma equipa de cientistas dos EUA e de França acaba de obter, no ratinho, resultados que parecem pôr seriamente em causa esta função fundamental do cromossoma Y – pelo menos quando se utilizam técnicas de reprodução assistida.

Os seus resultados, que foram publicados esta quinta-feira na revista Science, mostram que é possível restaurar a fertilidade de ratinhos machos totalmente desprovidos de cromossoma Y – e portanto supostamente inférteis – graças a outros genes, situados noutros cromossomas.

Mais precisamente, bastaram dois “sucedâneos” de genes do cromossoma Y para obter espermatozóides que a seguir permitiram a esses ratinhos estéreis, sem Y, ter filhotes. Segundo os autores do trabalho, os resultados poderão ter, no futuro, implicações na luta contra a infertilidade masculina.

Ambos os ratinhos e os humanos possuem dois cromossomas sexuais (no seu conjunto de 23 pares de cromossomas): as fêmeas são XX e os machos XY.

Com apenas umas centenas de genes, o cromossoma Y é hoje diminuto em comparação com o X, mas isso nem sempre foi assim. Nos longínquos antepassados dos mamíferos, o X e o Y eram em tudo semelhantes, formando um verdadeiro “par”, tal como os outros 22 pares de cromossomas humanos ainda o fazem.

Mas a dada altura, há dezenas de milhões de anos, o cromossoma Y começou a encolher drasticamente, tendo perdido, até hoje, 97% dos seus genes iniciais.

Esta aparente fragilidade levou aliás alguns especialistas a argumentar que o cromossoma Y tinha os dias contados. Contudo, vários estudos têm vindo a mostrar claramente que o cromossoma Y está cá para ficar.

Porquê? Em particular, porque é vital para a própria sobrevivência do organismo masculino e não apenas para a sua reprodução.

Assim, há uns anos, a equipa de David Page, do Instituto Whitehead (EUA), mostrara que, na sua versão actual, o Y só reteve 19 genes dos 600 que partilhava ancestralmente com o X – 19 genes que possuem portanto duas cópias no ADN dos homens – uma no X e uma no Y. Para Page, isto sugeria que esses genes eram particularmente importantes para os homens e que, como na ausência dessa duplicação alguma coisa não correria bem, foi por isso que a evolução se encarregou de os preservar no diminuto cromossoma Y ao longo de dezenas de milhões de anos.

Em 2014, essa tese foi confirmada pela equipa de Page e outros, que num artigo na revista Nature concluíam não só que esses 19 genes subsistem no Y há 25 milhões de anos (o contrário da fragilidade), como também que uma boa parte deles são activados em diversos tecidos do corpo para além do aparelho reprodutor masculino. Ou seja: sem o Y, os homens seriam provavelmente inviáveis – e a espécie humana ameaçada de extinção iminente.

Dois genes para a fertilidade
Entretanto, a equipa de Monika Ward, da Universidade do Havai (EUA) – a autora principal do artigo agora publicado na Science – tinha por seu lado andado a estudar qual seria a versão “minimalista” do cromossoma Y que garantiria, em certas condições, a fertilidade de ratinhos machos. E estes cientistas mostravam, em 2013 e também na Science, que era possível, com técnicas de reprodução medicamente assistida, gerar descendência a partir de ratinhos machos com apenas dois genes activos no cromossoma Y. Os dois genes indispensáveis chamam-se Sry, que é responsável pela formação dos testículos; e Eif2s3y, que é essencial às primeiras fases da produção de espermatozóides.

“Quer isso dizer que a maior parte do cromossoma Y não é necessário para a reprodução?”, interrogara-se na altura Monika Ward. E respondera. "No estado actual dos nossos avanços tecnológicos na reprodução assistida, quer.”

Se isto já era em si uma declaração contundente, agora os mesmos investigadores, com a colaboração de um colega da Universidade de Aix-Marselha (França) foram mais longe: mostraram que, mesmo na ausência desses dois genes do Y,  ainda é possível garantir a fertilidade dos ratinhos machos.

Magia? De forma alguma: basta agir directamente, por um lado, sobre um gene-alvo de Sry, chamado Sox9, que se encontra no cromossoma 11 destes animais; e, por outro, sobre o homólogo do gene Eif2s3y, chamado Eif2s3x – que está presente no cromossoma X dos ratinhos machos (é um dos tais 19 genes acima referidos). Mais precisamente: reproduzindo artificialmente a acção normal do Sry sobre o o Sox9 e utilizando o Eif2s3x para compensar a falta do Eif2s3y, mostraram que o cromossoma Y dos ratinhos podia literalmente ser substituído!

Para realizar as experiências, os cientistas começaram por criar ratinhos machos com três particularidades, obtidas por engenharia genética: uma total ausência de cromossoma Y; um gene Sox9 activado; e um gene Eif2s3x (do cromossoma X) sobreactivado. “O facto de aumentar assim a dose desse gene do X [Eif2s3x ] para além do que é normal quando ele e o seu homologo do Y estão presentes”, explica a Universidade do Havai em comunicado, “fez com que Eif2s3x passasse a desempenhar a função de Eif2s3y na iniciação da espermatogénese”.

Estes ratinhos, lê-se no mesmo comunicado, desenvolveram então testículos que continham “espermatídeos redondos”, ou seja, espermatozóides imaturos (uma vez que só a primeira fase do seu desenvolvimento fora induzida pelo gene Sox9). A seguir, colheram estas células germinais masculinas e utilizaram-nas, graças a uma técnica de fertilização in vitro chamada ROSI  (round spermatid injection), para fecundar ovócitos colhidos em ratinhos fêmeas. Por último, os embriões obtidos foram implantados no útero de “mães de substituição” e daí nasceram ratinhos. “Dos 11 embriões implantados, dez resultaram numa gravidez e nasceram nove ratinhos”, escrevem os autores no seu artigo.

Estas crias, derivadas portanto de machos sem cromossoma Y, eram saudáveis e tiveram um tempo de vida normal. E mais: não só as filhas destes ratinhos sem Y eram férteis, sem haver necessidade de recorrer a qualquer técnica artificial para se reproduzirem, como também o eram os netos dos ratinhos sem Y nascidos do cruzamento das suas filhas com ratinhos machos XY normais, explica ainda o comunicado. Por outro lado, graças à técnica ROSI, os cientistas também produziram três gerações consecutivas de machos sem Y. “Mostrámos assim que, no ratinho, o contributo do cromossoma Y não é necessário”, diz Monika Ward, citada no mesmo documento. “É uma boa notícia, uma vez que sugere que existem estratégias alternativas, dentro do genoma, capazes de entrar em acção em determinadas circunstâncias.”

A técnica ROSI ainda é considerada experimental no ser humano, devido a questões de segurança e outras dificuldades técnicas, mas os autores esperam que o seu trabalho incite os especialistas a reconsiderar a utilidade da técnica para resolver problemas de infertilidade masculina.

Uma pergunta impunha-se: poderia isto implicar também que um dia, graças a técnicas deste tipo, um casal de mulheres – ou até uma mulher sozinha – poderia vir a gerar descendência sem qualquer intervenção masculina? “O nosso estudo foi feito no ratinho”, respondeu-nos Monika Ward. “Embora ainda não tenhamos mostrado que duas fêmeas podem gerar descendência juntas, é teoricamente possível que a combinação da nossa abordagem transgénica com avanços recentes na área das células estaminais poderia permitir a um ratinho fêmea produzir espermatozóides – e até a uma única fêmea produzir esperma e ovócitos. No entanto, no ser humano, a situação é mais complicada e, no estado actual do conhecimento, não podemos afirmar que seria possível, [em particular] devido às diferenças de conteúdo genético entre os cromossomas Y de ratinho e humanos."

A cientista acrescenta que, de qualquer maneira, “a ser possível, envolveria extensas manipulações genéticas para conseguir fornecer as doses certas dos genes essenciais do cromossoma X”, tal como agora foi feito no ratinho sobreactivando o gene Eif2s3x. “Ora, por enquanto, nem sequer sabemos quais poderão ser esses genes essenciais no ser humano.”