Livros infantis para “meninos especiais”
Como é escrever um livro infantil sobre a Carolina, que é surda e cega? Ou fazer as ilustrações sobre o Tiago, que tem paralisia cerebral? É difícil. E é fácil. É o que dizem escritores e ilustradores que foram chamados a contribuir para a colecção “Meninos Especiais”
Vasco Gargalo, ilustrador, pegou num pau de giz e desenhou ao desafio com Martim, num quadro de ardósia. Paula Delecave, designer, pousou a máquina fotográfica, sentou-se no chão e tocou nas mãos e no rosto de Matilde. Luísa Ducla Soares, escritora, passou a tarde numa esplanada a comer gelados e a beber coca-cola com Carolina. Tinham-lhes pedido que usassem o seu talento para construir pontes entre as crianças ditas normais e aqueles meninos com deficiências, mas todos eles descobriram que, primeiro, também eles tinham de as atravessar. “Talvez tenha sido a coisa mais difícil que já fiz”, reflecte a autora de livros infantis e juvenis Alice Vieira.
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Vasco Gargalo, ilustrador, pegou num pau de giz e desenhou ao desafio com Martim, num quadro de ardósia. Paula Delecave, designer, pousou a máquina fotográfica, sentou-se no chão e tocou nas mãos e no rosto de Matilde. Luísa Ducla Soares, escritora, passou a tarde numa esplanada a comer gelados e a beber coca-cola com Carolina. Tinham-lhes pedido que usassem o seu talento para construir pontes entre as crianças ditas normais e aqueles meninos com deficiências, mas todos eles descobriram que, primeiro, também eles tinham de as atravessar. “Talvez tenha sido a coisa mais difícil que já fiz”, reflecte a autora de livros infantis e juvenis Alice Vieira.
A Alice Vieira costumam perguntar: “Por que é que não escreves sobre o campo?” E ela responde aquilo que considera “ óbvio”: que o que conhece bem é a cidade e não gosta de escrever sobre o que não domina. Fala desta sua “mania” para explicar que tinha boas razões para rejeitar o desafio que lhe foi lançado pela presidente da associação Pais em Rede, Luísa Beltrão. E para sublinhar que, apesar disso, não conseguiu dizer que não ao convite para se reencontrar com João, um menino autista com quem contactara numa outra iniciativa da associação. Objectivo: conhecê-lo melhor e escrever uma história de que ele fosse o protagonista.
O livro de Alice Vieira – como os restantes oito, publicados ao ritmo de três por ano – é para crianças. E até à contracapa, em que aparece a fotografia do João e um texto sobre ele sobre o que é o autismo, parece um livro vulgar. “Parece, mas não é. Implicou muito tempo, muito cuidado, o receio de fazer mal, de perturbar os pais, de não conseguir fazer chegar o João aos leitores”, enumera a escritora.
A ideia de Luísa Beltrão foi usar as histórias e as ilustrações de pessoas conceituadas para trazer para a luz estas crianças. “Costuma ver pessoas com deficiências no parque infantil? E na esplanada ou no cinema? Mesmo na escola, que agora é obrigatória – estes meninos estão com os seus pares?” A presidente da associação Pais em Rede, ela própria mãe de uma mulher com deficiência, diz que, “salvo raríssimas excepções”, as respostas às suas perguntas são “não”, “não”, “não” e “não”: “Geralmente estas crianças, estes adultos, estão escondidos, vivem escondidos, são invisíveis”.
Tornar estes meninos protagonistas de livros de histórias que podem ser lidos pelos alunos das escolas, pelos pais dos colegas de crianças com os mesmos problemas, pelos educadores e professores e até pelos próprios pais das crianças com deficiência, pelos seus familiares e pelos seus amigos, é mais importante do que pode parecer, diz Luísa Beltrão.
“É criar pontes para que as pessoas cheguem até elas, e é “revelá-los” “dá-los a ver” sem os preconceitos habituais. “É permitir que todos – mesmos os pais, que muitas vezes vivem numa ilha, demasiado sós com os seus filhos – olhem estas crianças com olhos lavados e limpos, que os vejam como as pessoas que são, com limitações e capacidades, que podem e devem ter amigos e projectos de vida”, explica.
Não é um processo fácil. Um ilustrador chegou a conhecer uma das crianças e depois desistiu, sentiu-se incapaz de participar no projecto. Uma mãe aceitou receber o escritor e o ilustrador e depois não deixou que o filho fosse identificado no livro. Não quis que a imagem da criança fosse associada à deficiência. Ao contrário, há quem veja no livro uma espécie de libertação, como Cláudia Mendes, ex-dirigente da Pais em Rede e mãe de Matilde, uma menina que do ponto de vista administrativo acompanha a turma do 4.º ano desde o jardim-de-infância mas na realidade ocupa um espaço especial na escola, a sala de apoio à multideficiência.
“Todos os meninos da escola leram o livro e puderam depois visitar e brincar com a Matilde e fazer um desenho sobre o que tinham aprendido sobre ela. De repente os colegas da minha filha começaram a vir ter comigo – um disse que era fã da Matilde, outro que finalmente tinha percebido por que é que ela não fala. Mas, principalmente, todos perceberam que nos dias bons – porque há dias maus – podem brincar com a Matilde”, diz Cláudia.
Matilde, de 9 anos, tem a síndrome de Pitt-Hopkins, uma das doenças designadas como “raríssimas”. “As crianças com esta doença têm dificuldade em aprender. Mas podem ser felizes e sorrir muito. Também podem, no entanto, ter surtos de angústia e outras perturbações de comportamento. É uma vida difícil, mas que nem por isso deixa de poder ser feliz”. É isto que se lê na contracapa do livro de Rui Zink, que Paula Delecave ilustrou.
“Foi uma experiência de vida. Tudo, desde o início. Um pouco de medo do que você desconhece, primeiro. E depois aproximar-se. Entrar no quarto dela, o seu mundo. Tirar algumas fotos, perceber que antes de continuar tinha de largar a máquina fotográfica, tocá-la e deixá-la tocar-me, para nos conhecermos”, descreve a designer e ilustradora. No livro usou fotomontagens e colagens “sem paternalismos, mostrando Matilde tal como a viu: “uma menina alegre, com uma relação intrincada com a mãe, que adora o baloiço e para quem ser Matilde, como escreveu o Rui [Zink] é uma aventura”, diz Paula Delecave.
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