Bruxelas impôs Santander quando ainda decorria concurso de venda do Banif

A 15 de Dezembro, os gestores do Estado no Banif escreveram a Jorge Tomé a dizer que o Governo os informou que Bruxelas queria o banco vendido a uma instituição a operar em Portugal, três vezes maior.

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Catarina Oliveira Alves

À medida que se aproxima o início dos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito à nacionalização e venda do Banif, ainda sem data agendada, vão surgindo informações que ajudam a levantar o véu sobre o que aconteceu nas vésperas da decisão de resolução que poderá implicar perdas para o Estado até 3200 milhões de euros (2400 milhões já garantidos). O BCE e Bruxelas impunham o Santander nos bastidores, mas oficialmente garantiam que não intervinham.

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À medida que se aproxima o início dos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito à nacionalização e venda do Banif, ainda sem data agendada, vão surgindo informações que ajudam a levantar o véu sobre o que aconteceu nas vésperas da decisão de resolução que poderá implicar perdas para o Estado até 3200 milhões de euros (2400 milhões já garantidos). O BCE e Bruxelas impunham o Santander nos bastidores, mas oficialmente garantiam que não intervinham.

Durante o processo de venda do Banif, os dois gestores indicados pelo Estado, Miguel Barbosa e Issufa Ahmad, enviaram um email aos restantes administradores da equipa liderada por Jorge Tomé com o seguinte teor: de acordo com instruções da DGCOM para o secretário de Estado das Finanças, o concurso para a alienação do banco teria de respeitar condições, nomeadamente, a venda a uma instituição a operar em Portugal cuja dimensão fosse três vezes superior à do Banif. O adquirente não podia ainda beneficiar de auxílio estatal. A missiva foi dirigida ao início da tarde de 15 de Dezembro, terça-feira, quatro dias antes de terminar o prazo indicativo para a venda em concurso, sexta-feira, 18 de Dezembro. O que constitui uma tentativa de Bruxelas de condicionar o resultado do concurso de venda do Banif. A iniciativa de Barbosa e de Ahmad precedeu ainda em seis dias a resolução do banco, decretada domingo, 20 de Dezembro.

O Estado detinha 61% do capital do Banif, o que levou à nomeação dos dois administradores, Miguel Barbosa e Issufa Ahmad, com poderes de decisão e de veto, e de três membros para a comissão de auditoria. Desde Setembro de 2014 que Barbosa estava a tempo inteiro no Banif, onde tinha o pelouro do risco, indicado pelo BdP em representação do Estado. Barbosa foi ocupar o lugar deixado vago por António Varela, que, em Setembro de 2014, passou a integrar a administração do Banco de Portugal por nomeação da ex-ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque.

Em Portugal, apenas dois bancos, Santander e BPI, cumpriam as exigências de Bruxelas em termos de dimensão (três vezes maiores) e de não terem ajudas públicas. Isto, dado que o BPI já devolveu o empréstimo estatal de 1500 milhões de euros de Coco’s. Mas na prática, sem o mencionar, Bruxelas restringiu a venda ao Santander. Porquê? Ao contrário da filial do grupo espanhol, o BPI não foi convidado a apresentar uma oferta de compra do Banif.

E dos seis grupos que entregaram propostas, três fizeram-no por sugestão do BdP: os dois grupos espanhóis Santander e Banco Popular e o fundo de private equity norte-americano Apollo (dono da Tranquilidade). A 18 de Dezembro todos entregaram ofertas vinculativas, embora a da Apollo não a comprometesse, o que só veio a acontecer no sábado à noite, com sugestão de início de negociações domingo de manhã.

O Governo e o BdP acabaram por não receber o fundo norte-americano alegando “falta de tempo” e por acatar a imposição das autoridades europeias. E a 20 de Dezembro o Santander comprou os activos bons do Banif com um apoio dos contribuintes portugueses de quase 2000 milhões de euros (as perdas totais para o Estado podem chegar a 3200 milhões). Um dos temas que a comissão de inquérito terá de avaliar é se as condições da proposta entregue a 18 de Dezembro pelo Santander no concurso de venda do Banif eram mais favoráveis aos interesses do Estado do que a que foi acordada, dois dias depois.

A meio da tarde de sexta-feira, 18 de Dezembro, em Bruxelas, onde participava numa Cimeira Europeia, o primeiro-ministro António Costa mostrava-se ainda confiante: “A minha esperança é que as ofertas que venham a existir dispensem a existência de um orçamento correctivo.” Apesar de o banco estar nacionalizado, António Costa já não dominava os acontecimentos e é agora forçado a tomar uma decisão em sentido contrário ao que pretendia. 

No dia 26 de Janeiro, no quadro de uma conferência sobre o desempenho do sector financeiro organizada pelo Instituto de Direito Económico Financeiro e Fiscal (IDEFF) da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde participou, Jorge Tomé explicou que, no processo de venda por concurso do Banif, apesar de o BdP “ter definido o perímetro e os investidores contactados para termos propostas vinculativas até 18 de Dezembro”, admitiu que “em paralelo alguma coisa se estaria a passar”. “Somando algumas peças, [posso concluir que] o Banco de Portugal começou a preparar a resolução do Banif.” Ou seja: “Por um lado, lançava o concurso, e, por outro, estava a preparar a resolução.”

A ajudar a complicar o desenlace do Banif esteve o facto de nos primeiros dias da semana, 14, 15 e 16 de Dezembro, o banco ter sido alvo de levantamentos de quase mil milhões de euros, o que colocou pressão sobre a sua solidez. No dia 13, uma notícia da TVI, do grupo espanhol Prisa, apontara para o fecho iminente do Banif, com encerramento de todos os balcões, despedimentos e perdas para os credores e depositantes, incluindo acima de 100 mil euros (a informação seria corrigida progressivamente nas horas seguintes).

As informações que têm vindo a público nas últimas semanas dão conta de uma intenção deliberada por parte da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu de fomentar a consolidação da banca espanhola, através da absorção dos bancos portugueses. E com colaboração do Banco de Portugal.

Na sua última edição, o Expresso revela uma carta trocada na manhã de 19 de Dezembro entre o BCE e o Governo. Nesse sábado, a presidente do Conselho de Supervisão do Banco Central Europeu, Daniéle Nouy, dirigiu um email a Mário Centeno, “com o conhecimento de Vítor Constâncio”, vice-presidente do BCE (e ex-governador do Banco de Portugal), onde informa: “A chamada com o Santander correu muito bem e a Comissão Europeia vai aprovar.”

Nesse momento, ainda decorria o concurso de venda do Banif, o que não impediu as movimentações de bastidores, pois, ainda segundo o mesmo semanário, o BCE admitiu que “há outras ofertas para o Banif, que de acordo com a Comissão não respeitam as regras de União Europeia das ajudas de Estado, e que por isso não podem seguir em frente. Daniéle Nouy tece ainda elogios rasgados ao Santander, “que se está a comportar de maneira muito profissional e tem um departamento legal excelente”, e diz que vai começar a trabalhar directamente” com o grupo espanhol. Não sem antes deixar um aviso a António Costa: “A Comissão Europeia foi muito clara neste aspecto, por isso, recomendo que nem percam tempo a tentar fazer passar essas propostas.

A ingerência documentada do BCE na definição do novo dono do Banif entra em clara contradição com a posição oficial do gabinete de imprensa do BCE. Depois da notícia do PÚBLICO de 8 de Janeiro, com o título “BCE recusou oferta que poupava 1700 milhões aos contribuintes”, a porta-voz da instituição europeia enviou um email: “O BCE não comenta situações de bancos individuais em processos de fusões e aquisições. O Banif não é supervisionado directamente pelo BCE e a sua venda foi supervisionada pelo Banco de Portugal.”