Belga Hermann distinguido com o Grande Prémio do Festival de BD de Angoulême
Escolha encerra ciclo da polémica sobre a discriminação das mulheres no festival francês cuja 43.ª edição começa esta quinta-feira e vai até domingo.
O desenhador belga Hermann (Huppen), o autor da Colecção Bernard Prince (actualmente a ser editada pelo PÚBLICO), mas também de Jeremiah e Comanche, foi esta quarta-feira distinguido com o Grande Prémio do 43.º Festival Internacional de Banda Desenhada (FIBD) de Angoulême, no sudoeste de França, que começa esta quinta-feira e decorre até domingo.
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O desenhador belga Hermann (Huppen), o autor da Colecção Bernard Prince (actualmente a ser editada pelo PÚBLICO), mas também de Jeremiah e Comanche, foi esta quarta-feira distinguido com o Grande Prémio do 43.º Festival Internacional de Banda Desenhada (FIBD) de Angoulême, no sudoeste de França, que começa esta quinta-feira e decorre até domingo.
Herman foi escolhido na sequência de duas voltas de votação online, e após quase um mês de polémica em volta das questões de género e discriminação relativamente ao lugar das mulheres naquele que é o mais importante festival de BD na Europa.
No final, a comunidade dos autores coroou “uma das obras mais emblemáticas da BD franco-belga para todos os públicos e o percurso de um dos autores mais prolíficos da 9.ª Arte europeia”, diz a direcção do festival no comunicado em que anuncia o prémio.
Hermann, nascido em 1938 e com formação em arquitectura e decoração antes de se lançar na BD como autodidacta, conta já com uma carreira extensa, iniciada nos anos 1960 (Belles histoires de l'Oncle Paul, no estúdio de Greg), com publicações dispersas por vários países e com múltiplos prémios. Jugurtha, Les Tours de Bois-Maury, Sarajevo Tango e On à tué Wild Bill são outros títulos marcantes da sua produção, que presentemente continua em curso, com o seu filho Yves H. Hermann é autor de "uma banda desenhada física e intensa, às vezes quase violenta, com um sentido consumado dos ambientes, um talento pouco comum para sugerir os temas, uma energia omnipresente", diz a direcção do festival de Angoulême.
Reaginda à distinção, Hermann disse-se “surpreendido”, agradeceu, e mesmo se confessou nunca ficar “totalmente satisfeito” com as suas criações, prometeu continuar a desenhar “até ao fim”.
O autor belga bateu, na segunda e última volta da votação, os dois outros autores seleccionados no passado domingo para a final: o britânico Alan Moore (n. 1953), criador de Watchmen e V comme Vendetta; e a francesa Claire Wendling, de 48 anos, nome que veio a ser acrescentado numa segunda fase do processo de eleição para o Grande Prémio – uma distinção de carreira, que, na história do festival fundado em 1973, só por duas vezes contemplou autoras femininas: Florence Cestac, em 2000, e Claire Brétécher, em 1983, mas neste caso com um “prémio especial” a assinalar o 10.º aniversário do festival.
O anúncio do Grande Prémio, que foi entregue pelo autor distinguido na edição anterior do festival, o japonês Katsuhiro Otomo (Akira), terá vindo a pôr cobro – ou talvez ainda não – a uma acesa polémica pública em França, em torno do lugar das mulheres no mundo da BD. A questão foi levantada logo depois que, a 5 de Janeiro, a direcção do festival divulgou a lista inicial de 30 nomes seleccionados tendo em vista a atribuição do Grande Prémio, onde não constava nenhuma mulher.
As acusações de sexismo e de discriminação surgiram um pouco de todo o lado, e inundaram as redes sociais. De tal modo que uma dezena de entre os 30 nomeados apressaram-se a demarcar-se das escolhas do festival. O primeiro a manifestar-se foi o francês Riad Sattouf, duas vezes distinguido com o Fauve d’Or de Angoulème (o prémio para cada uma das secções a concurso no festival), que lamentou a ausência de mulheres na lista e se disse “irritado” com a situação. Seguiram-se-lhe o seu compatriota Joann Sfar e o norte-americano Daniel Clowes, que aderiram também ao boicote ao processo do Grande Prémio. A própria ministra da Cultura de França, Fleur Pellerin, entrou também na liça considerando a situação “anormal”.
Num primeiro momento, a direcção do festival tentou recordar que, ao contrário dos Fauve d’Or, que distinguem a produção editorial do último ano, o Grande Prémio é uma distinção para uma carreira e o conjunto da obra. E tentou esvaziar a contestação abrindo a lista dos nomeados ao acrescento de nomes de mulheres. Mas, como a polémica não esmoreceu, o FIBD optou por uma nova solução, de “democracia directa”, como se lhe referiu o delegado-geral do certame, Franck Bondoux: a comunidade dos autores(as) de BD poderia votar livremente em quem quisesse, até ao dia 17 de Janeiro. E depois de duas anteriores modificações no processo da votação nas edições de 2013 e 2014, a escolha do Grande Prémio passará a manter-se assim, no futuro.
Foi na sequência dessa inovação que 1216 votantes on-line escolheram os três nomeados para a final. Só que aí, o aparecimento do nome de Claire Wendling acabaria por reacender a discussão. É que a própria nomeada, uma autora que praticamente já não edita BD desde há quase duas décadas, manifestou-se surpreendida e, no Facebook, fez uma espécie de apelo a que não votassem nela. “Sou muito discreta, não gosto de me exibir”, escreveu Wendling, avançando com um paralelismo inesperado: “É como se me oferecessem uma camisola horrível no Natal e eu fosse obrigada a usá-la todos os dias”.
A BD não tem sexo
Na passada segunda-feira, em conferência de imprensa realizada em Paris, Katsuhiro Otomo, o celebrado autor da saga Akira (com mais de um milhão de exemplares vendidos), referiu-se a esta polémica defendendo que no mundo da banda desenhada ou da manga não há sexo, “só o talento conta”. “É preciso trabalhar, e a diferença de sexos não tem importância; só as obras são interessantes”, acrescentou, citado pela AFP, o vencedor do Grande Prémio de 2015.
Sobre a situação das mulheres no mundo da BD, Otomo admitiu que a igualdade entre estas e os homens “não está ainda estabelecida no mundo actual”, mas recordou que no universo da manga o principal critério é produzir “obras que se vendam”, pouco importando que “o autor seja branco ou preto, homem ou mulher”.
Katsuhiro Otomo vai ser, de resto, uma das figuras homenageadas no festival deste ano, através de uma exposição colectiva que reúne trabalhos de 42 autores. “Raros são os autores que, como Katsuhiro Otomo, souberam marcar os seus pares e influenciar várias gerações de artistas, de vários países e culturas diferentes”, diz o FIBD sobre a obra do autor japonês, que será celebrado numa parceria do festival com a galeria Glénat e numa exposição no Teatro de Angoulème – que inclui também a edição de um catálogo cuja capa terá uma ilustração inédita do japonês.
Mas na lista da mais de uma dezena de exposições que vão marcar a 43ª edição do FIBD o foco incidirá sobretudo nas figuras de Morris, o criador de Lucky Luke, e de Hugo Pratt, o inventor de Corto Maltese.
Conhecido como o “homem de uma obra só”, o desenhador belga Morris (Maurice de Bévère, 1923-2001) eternizou o seu nome com a criação do cowboy que “dispara mais depressa do que a sua própria sombra”. Publicou mais de sete dezenas de álbuns, metade dos quais com argumento de René Goscinny (o autor de Asterix), que foram traduzidos em 29 idiomas e vendeu mais de 300 milhões de exemplares.
A apresentar no Museu de Banda Desenhada de Angoulème – onde ficará patente até 18 de Setembro –, a exposição A Arte de Morris assinala os 70 anos da criação de Lucky Luke, data que será ainda assinalada com a edição de dois novos álbuns, um de feição “realista”, realizado por Matthieu Bonhomme, outro em registo humorístico, com desenhos de Bouzard.
A exposição Hugo Pratt, encontros e passagens, de homenagem a um autor desaparecido há cerca de vinte anos (1927-1995), celebra a atenção que o desenhador italiano sempre dedicou à literatura. “Quantas vezes Corto não aparecia com um livro nas mãos ou fazia uma citação literária que iluminava as suas escolhas de vida”, nota a direcção do festival na apresentação desta mostra concebida pelo Museu Hergé, em Louvain-la-Neuve, na Bélgica.
Se Morris e Hugo Pratt são as mostras mais mediáticas no festival, o programa inclui também exposições sobre temas como a figura do pato na BD norte-americana, Interduck-Duckomenta; o universo da saga Lastman (que na edição do ano passado venceu um Fauve d’Or na categoria série); Hibana, publicação mensal de manga, a partir da qual se desvendam os bastidores desta BD japonesa; o autor francês de BD alternativa Jean-Christophe Menu; o autor sul-coreano Li Chi Tak; e a mostra multimédia Phallaina, criação da autora e realizadora Marietta Ren com aplicações para tablets e smartphones.