O regresso de John Cale ao álbum que quis esquecer
Obra-prima gravada em 1982, Music for a New Society desapareceu de circulação há vários anos, dada a recusa do músico em voltar a expor-se ao tormento da sua gravação. Agora, numa tentativa de terminar o exorcismo então iniciado, Cale reedita o álbum e junta-lhe uma reinterpretação actual.
A distopia errática e avulsa que John Cale explorou em Music for a New Society nada tinha de exercício de ficção científica, pouco tinha de político ou anseio por um novo paradigma social, não estava particularmente interessada em imaginar ou antecipar que mundo esperaria o músico galês daí por 15/20/30/50 anos. O que então movia Cale era a necessidade imperiosa e urgente de evadir-se do presente. Em meados de 1982, quando Cale entrou para os Sky Line Studios, em Nova Iorque, desafiado por Michael Zilkha da ZE Records a registar um álbum a solo composto e tocado no fio da navalha, quase de improviso, o seu estado de agonia era tão acentuado que a projecção de futuro vertida para as letras e para a música não simbolizava senão uma porta das traseiras. Uma saída de emergência que lhe permitisse fugir impulsivamente do “tortuoso” estado mental em que – já o admitiu várias vezes – se encontrava.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A distopia errática e avulsa que John Cale explorou em Music for a New Society nada tinha de exercício de ficção científica, pouco tinha de político ou anseio por um novo paradigma social, não estava particularmente interessada em imaginar ou antecipar que mundo esperaria o músico galês daí por 15/20/30/50 anos. O que então movia Cale era a necessidade imperiosa e urgente de evadir-se do presente. Em meados de 1982, quando Cale entrou para os Sky Line Studios, em Nova Iorque, desafiado por Michael Zilkha da ZE Records a registar um álbum a solo composto e tocado no fio da navalha, quase de improviso, o seu estado de agonia era tão acentuado que a projecção de futuro vertida para as letras e para a música não simbolizava senão uma porta das traseiras. Uma saída de emergência que lhe permitisse fugir impulsivamente do “tortuoso” estado mental em que – já o admitiu várias vezes – se encontrava.
Aquilo com que John Cale claramente não contava era que o álbum, gravado no fundo de um poço emocional, denso, pesado e negro, arrancado a ferros e num processo de quase tortura pessoal através da música, viesse a acumular um estatuto de obra-prima. Em grande parte – não é possível nem desejável escapar-lhe –, graças ao tom desamparado que atravessa cada uma das interpretações de Music for a New Society, mas também em consequência do afastamento imediato de Cale das gravações. Não as renegando, o ex-Velvet Underground parecia apenas interessado em deitar terra para cima do disco e enterrá-lo bem no fundo na memória, como se a sua proximidade fosse contagiosa e pudesse ameaçar-lhe a saúde mental. Daí que, ao contrário da restante discografia de John Cale, Music for a New Society tenha há muito desaparecido de circulação, tornando-se uma intrigante peça rara.
Nas suas futuras revisitações frequentes de temas como Thoughtless Kind, Close Watch e Chinese Envoy, o desamparo original era trocado por uma versão menos excessiva, mais pacificada. “Foi um período de muita amargura”, recorda John Cale ao Ípsilon. “Estava a tentar perceber como soltar alguma da pressão que sentia e não tinha orçamento para a banda – por isso gravei sozinho todos os instrumentos. Havia coisas no álbum que eram implacáveis, mas eram implacáveis devido à forma como usavam o silêncio; e o fosso entre a música e as letras era difícil porque todas as canções foram improvisadas. A regra que tinha estabelecido era que nada contava a menos que a fita estivesse a correr. Primeiro, decidia que personagem ia dar voz ao tema e sobre o que ia cantar, depois vinha a pressão para perceber como é que a canção se ia resolver. Foi uma espécie de method acting com a escrita de canções. Achei que era uma forma de lidar com a tensão e com a dor que estava a atravessar na altura.”
Music for a New Society funcionou como estratégia de sobrevivência. Ao colocar em música a tormenta por que então passava, John Cale apostava tudo na hipótese de que a fixação desse momento em canções pudesse trazer-lhe a libertação total do estado ruinoso em que se via metido. “Se conseguisse deitar tudo isso cá para fora, toda essa crise pessoal a que nunca mais quero voltar, feita de muitas coisas combinadas, poderia ver isso mais tarde com a certeza de ter sido honesto acerca desse período e, dessa forma, esperava poder ajudar-me.” Todo o álbum, acrescenta, equivale a um grito mudo contínuo em que diz para si mesmo “Não quero estar aqui, quero estar noutro sítio, noutro tempo e noutro espaço”. “Tirem-me daqui!”, quase berra ao telefone com o Ípsilon. “Estava desesperado por que me tirassem dali.” Daí a emergência de um plano futurista e ficcional, inventando um consolo onde não existia nenhum.
Foi na sequência de insistentes pedidos de festivais para que tocasse Music for a New Society na íntegra ao vivo que John Cale começou a pensar que poderia ter de puxar da pá e desenterrar um álbum de que só de forma evasiva se dispunha a falar em entrevistas. O primeiro sinal de que poderia estar disposto a resolver essa inconfessável repulsa pela sua própria obra passada chegaria no primeiro aniversário da morte de Lou Reed, em Outubro de 2013. Ao disponibilizar online o vídeo de uma nova versão de If You Were Still Around, em que surgia rodeado da projecção de fotografias de Lou Reed, Andy Warhol e Nico, Cale atrevia-se a destapar a memória do seu álbum maldito e a ajoelhar-se diante da sua própria vida – como que reconhecendo, finalmente, que não poderia escapar-lhe.
A letra de If You Were Still Around, em 1982, havia de aterrar nas mãos de Cale enviada pelo dramaturgo Sam Shepard, com quem Cale então trabalhava na ópera Fool for Love, and the Sad Lament of Pecos Bill on the Eve of Killing His Wife. A sua pronta inclusão adequava-se ao vago planeamento das sessões. Cale chegava ao estúdio, dispunha alguns elementos, dava ordem para a fita rodar e atirava-se sem rede.
Um disco de tortura
A actual surpreendente solução encontrada por John Cale obedece à lógica catártica que mais bem serviria Music for a New Society. Reeditando o álbum original (acrescido de dois takes alternativos e um inédito das sessões, Library of Force), Cale adiciona um segundo disco intitulado M:FANS com novas versões para a totalidade dos temas, inclusivamente Library of Force e Back to the End (cujo original permanece desconhecido). “Este disco agora é que é o verdadeiro exorcismo”, desabafa. “O antigo tem todos os elementos de tortura. Este respeita isso, mas puxa a força das canções, não está tudo tão desesperançado.” M:FANS, no fundo, prolonga a luta de John Cale consigo mesmo. Só que era tempo de o galês “mostrar que essa luta progrediu e que isso não é uma coisa assim tão má”.
O respeito de Cale pelas versões originais é evidente, não cedendo a reinventar por completo Music for a New Society – apesar da mais esticada e excelente Close Watch, de refrão a aventurar-se no auto-tune, incluindo segundas vozes de Amber Coffman, dos Dirty Projectors –, procurando outra forma de atingir as atmosferas extremamente densas que antes podiam incluir sons industriais, gaitas de foles da Polícia de Nova Iorque e uma propensão mais distinta para ecoar as ligações de Cale ao universo da música erudita. Quando as gaitas de foles ressoam longínquas nessa primordial versão de Thoughtless Kind, acompanhadas de uma percussão bruta e esparsa, quase se consegue visualizar Cale sentado ao teclado, cantando enquanto paredes colapsam à sua volta e a civilização é engolida pelo chão. No novo disco, Sanctus (Sanities) e Library of Force, dois temas de pura obsessão, mantêm esse doentio registo claustrofóbico e “Sanctus”, na verdade, talvez aprimore mesmo a sua aura torturada.
As sessões originais estavam de tal forma eclipsadas da memória de John Cale que o músico optou não só por regravar dois inéditos – Library of Force (incluído também na versão remasterizada do álbum de 1982) e Back to the End. “Tínhamos uma série de fitas que eram inaudíveis e nem sabíamos o que estava lá, com as quais tivemos de ter muito cuidado para não se desintegrarem. Mas depois encontrámos esta canção, Back to the End, que foi uma grande surpresa, fiquei muito feliz por soar tão bem e tão acabada”, conta. Durante muito tempo, Cale não conseguiu sequer pensar em ouvir novamente o disco, por lhe lembrar “com demasiada exactidão o quão penoso foi fazê-lo”. Hoje, reconhece com cautela, “há alguma beleza naquela dor”.
M:FANS foi ganhando forma a partir dos novos arranjos que Cale imaginou para palco, disponível apenas para a revisitação do álbum na condição de deixar cair por completo algumas das antigas versões. O que daqui resulta é um festim: uma obra-prima finalmente disponível e um novo disco a partir do mesmo material, tomando outras direcções, mas com um magnetismo quase intocado. Aquilo que M:FANS não alcança é precisamente tudo quanto John Cale quis varrer para longe: essa sensação de queda no vazio, de um futurismo assombrado, de um homem que mal se vai aguentando vivo sem conseguir furar ou desenlear-se de um infinito novelo de descalabro pessoal.
Oiça-se Chinese Envoy, um portento de desânimo, uma beleza feita de chagas abertas, uma narrativa de perfeita encenação trágica de uma princesa incapaz de apaziguar franceses e alemães, alegadamente inspirada pelo conto de Maupassant Miss Harriet. A guerra travada, no entanto, e como já se terá percebido chegados a este ponto, era de Cale consigo mesmo. E nunca, mesmo agora, é claro se houve alguma trégua a colher de Music for a New Society.