"Quer o Estado que eu usufrua da pensão de alimentos da minha filha?"
Arquitecta queixa-se à Segurança Social e à Provedoria de Justiça de norma que subtrai pensão de alimentos a rendimento social de inserção
Paula Rodrigues ficou de boca aberta quando viu o valor. Seria engano? Já se afligia para se organizar com 231, 60 euros de Rendimento Social de Inserção (RSI), como é que ia fazer com 111,60? Foi à Segurança Social. Explicaram-lhe que a pensão de alimentos faz parte do rendimento do agregado familiar e por isso mesmo o seu valor é deduzido, na íntegra, no RSI.
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Paula Rodrigues ficou de boca aberta quando viu o valor. Seria engano? Já se afligia para se organizar com 231, 60 euros de Rendimento Social de Inserção (RSI), como é que ia fazer com 111,60? Foi à Segurança Social. Explicaram-lhe que a pensão de alimentos faz parte do rendimento do agregado familiar e por isso mesmo o seu valor é deduzido, na íntegra, no RSI.
Apresentou uma reclamação formal à directora do Instituto da Segurança Social esta segunda-feira. E esta terça-feira outra à Provedoria de Justiça. “Eu sou uma pessoa íntegra. A pensão de alimentos é exclusivamente para a minha filha. Não lhe posso negar o que o pai lhe dá.”
Já lhe explicaram que estão a aplicar o Decreto-Lei n.º 133/2012, aprovado pelo Governo PSD/CDS. “Não acho que seja justo”, diz. “Onde é que fica o superior interesse da criança quando há legislação que determina que a pensão de alimentos, que devia ser exclusivamente para a criança, também seja para a mãe?”
O tema do debate desta quarta-feira no Parlamento é a reposição das prestações sociais e o combate à pobreza. O “Pacote Rendimento”, aprovado pelo Governo em 17 de Dezembro, trouxe o aumento dos três primeiros escalões do abono, a reposição do valor de referência do complemento solidário para idosos, o retorno das velhas escalas de equivalência do RSI, mas nada contém sobre condições de recurso.
Paula Rodrigues vasculhou a internet à procura de respostas. Encontrou um parecer do Observatório de Direitos Humanos sobre uma mulher, vítima de violência doméstica, a quem foi atribuído RSI depois de fugir de casa com os filhos e retirado quando passaram a receber pensão de alimentos.
“O direito à segurança social que inclui uma pretensão de exigência da dignidade dos menores deve ser considerado da mesma forma que o direito à segurança social da queixosa”, dita o documento assinado pela jurista Sara de Almada Domingos. “Os menores são excluídos da atribuição do RSI porque recebem alimentos. A mãe é excluída da atribuição do RSI porque os filhos recebem alimentos. A circunstância que os diferencia é o facto de uns receberem rendimentos e outro não.”
Paula é arquitecta. Conta 12 anos de trabalho precário. “Sempre trabalhei a recibos verdes. Nunca foi fácil. Às vezes, passava meses sem trabalho na área, mas ia encontrando trabalho, ia gerindo.” Quando engravidou, já trabalhava meio tempo num atelier de arquitectura e outro meio num café.
Contava 36 anos. Conhecia os discursos sobre maternidade adiada, envelhecimento, incentivos à natalidade. “Claro que me assustava ter um filho. E a prova disso é que não tive mais cedo.” Se não fosse naquele momento, quando seria? “Achei que não devia ter medo. Que o trabalho ia surgindo. E não dependia só de mim. O pai da minha filha é funcionário público. Tem vínculo laboral sem termo.”
Além de trabalhar num atelier e num café, frequentava um mestrado. Pareceu-lhe demasiado para uma grávida. Deixou o café. E comunicou a gravidez ao atelier. “Trabalhei até ao último dia de gravidez. Dois meses e tal depois de a minha filha nascer, chamaram-me e disseram-me que iam rescindir o meu contrato de prestação serviços. Alegaram que não tinham dinheiro para continuar a pagar.”
Não tinha direito a subsídio de desemprego. Tinha uma pequena poupança. “Primeiro, ia dando resposta aos anúncios que iam surgindo na minha área. Depois, percebi que tinha de tentar outras áreas.” Já fez trabalho gráfico, já cozinhou num café, já fez atendimento ao público numa loja de decoração, já pintou casas, já limpou jardins, já fez tradução e revisão de texto, mas desde que nasceu o bebé parece tudo mais complicado. “A partir do momento em que dizia que tinha uma filha, bebé, a atitude mudava. Perguntavam-me: como é que vai fazer, se a sua filha ficar doente? Quem vai ficar com ela? Tem apoio? Tinha de responder. Tinha de ser honesta. E tudo isso pesa.”
Não sabe quando contribuiu o desemprego para o fim da relação. A menina contava dois anos quando o pai saiu de casa. Em Janeiro de 2015, engoliu em seco e recorreu ao RSI. Em Fevereiro, atribuíram-lhe o valor máximo: 178,15 euros em seu nome e 53,44 em nome da menina. O ex-companheiro ainda pagou a renda uns meses. Tentaram perceber como se poderiam organizar. Fizeram contas para apurar os gastos exclusivos da criança, com fraldas, produtos de higiene, vestuário, alimentação, saúde. Decidiram que o pai, que pode ver a filha sempre que quiser, pagaria uma pensão de alimentos de 120 euros. “Esse valor foi decidido em função dos dias que ela está cá em casa e das despesas que eu tenho, pensando que teria, pelo menos, o RSI”, diz ela.
Nunca antes tinha beneficiado de uma prestação social. “Muda muita coisa na vida quando se tem um filho”, suspira. “Já precisaria de um sítio para viver, mas uma coisa é estar sozinha e outra é ter uma filha.” Há que lhe garantir condições. “Quando pedi RSI foi por não poder cumprir com a minha parte.”
Em Novembro, quando requereu a renovação daquela prestação social, entregou na Segurança Social uma cópia do acordo de regulação das responsabilidades parentais, que já dera entrada no tribunal, embora ainda não tivesse sido homologado. Em Dezembro, sem qualquer aviso, recebeu 111,60 euros de RSI em vez de 231, 60 euros.
Pediu explicações à Segurança Social. Foi recebida quinta-feira. Protestou: “Eu só soube que o meu RSI tinha sido reduzido pela transferência bancária. Não recebi nenhuma carta em casa.” A técnica que a atendeu retorquiu: “É absolutamente impossível todos os beneficiários receberem um ofício em casa.”
Tudo isto parece “absurdo” a Paula. “Não é que eu esteja à espera que o Estado pague o meu encargo com a minha filha”, diz. “Se tivessem cortado a parte da minha filha, eu aceitaria. O que eu não aceito, porque não é de todo admissível, é terem reduzido a minha parte, a que me compete enquanto indivíduo.”
“Se a minha filha tivesse ficado à guarda do pai, esta parte não me seria retirada”, sublinha. “Ela ficou comigo, porque nós, eu e o pai, entendemos que isso é o melhor para ela.” Pergunta-se o que quer o Estado que ela faça agora. "Vou usufruir da pensão de alimentos da minha filha? Vou prescindir do direito/dever de lhe proporcionar mais qualquer coisa?" Não lhe parece certo.