Olha que bem que eu filmo
O novo filme de Alejandro Iñárritu sucumbe rapidamente à demonstração de virtuosismo formal e calculista.
E se de repente o mexicano Alejandro González Iñárritu tivesse descoberto o poder e o valor do silêncio e da quietude, a capacidade de contar uma história de modo directo e despojado, sem cair nos excessos ostensivos que o tornaram num dos realizadores mais polarizadores do cinema contemporâneo? Durante os primeiros 45 minutos de O Renascido, é mais do que legítimo esperá-lo, é até possível. A história do batedor traído, deixado à morte no inverno rigoroso do Wyoming no século XIX mas que sobrevive para regressar à civilização em busca de vingança, começa de modo assinalavelmente equilibrado. De um lado, uma visão gloriosamente panteísta e mística, neo-pós-Malickiana, de uma natureza ainda em bruto, extraordinariamente fotografada por Emmanuel Lubezki. Do outro, uma narrativa inteiramente moldada por essa natureza, pelas condições do tempo e do terreno, com qualquer coisa de endurance táctil e Herzogiana (muito se pode falar da rodagem em exteriores, a verdade é que essa realidade transparece nas imagens).
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E se de repente o mexicano Alejandro González Iñárritu tivesse descoberto o poder e o valor do silêncio e da quietude, a capacidade de contar uma história de modo directo e despojado, sem cair nos excessos ostensivos que o tornaram num dos realizadores mais polarizadores do cinema contemporâneo? Durante os primeiros 45 minutos de O Renascido, é mais do que legítimo esperá-lo, é até possível. A história do batedor traído, deixado à morte no inverno rigoroso do Wyoming no século XIX mas que sobrevive para regressar à civilização em busca de vingança, começa de modo assinalavelmente equilibrado. De um lado, uma visão gloriosamente panteísta e mística, neo-pós-Malickiana, de uma natureza ainda em bruto, extraordinariamente fotografada por Emmanuel Lubezki. Do outro, uma narrativa inteiramente moldada por essa natureza, pelas condições do tempo e do terreno, com qualquer coisa de endurance táctil e Herzogiana (muito se pode falar da rodagem em exteriores, a verdade é que essa realidade transparece nas imagens).
Mas é sol de pouca dura. Quando Leonardo di Caprio é deixado para trás pelo vilão Tom Hardy, desenhando no processo a oposição entre a nobreza do homem que soube acomodar-se à natureza e a mesquinhez do egoísta para quem só a sobrevivência própria a qualquer custo importa, O Renascido afunda-se numa pura demonstração de savoir-faire, estranhamente exangue e distante. A única coisa que vemos é a paisagem, a fotografia, a dureza dos elementos, o sofrimento de um Di Caprio que nunca encarna uma personagem mas se limita a dar corpo a uma via sacra. O seu Hugh Glass – e não por culpa do actor – é uma enorme cifra, um invólucro com quem nunca podemos empatizar porque o filme não está interessado nele enquanto ser humano, apenas enquanto pretexto para Iñárritu mostrar o seu virtuosismo técnico. Mais depressa o vilão untuoso de Hardy nos fica na cabeça do que a personagem de Di Caprio, ou mesmo do que o já célebre ataque do urso, mas mesmo aí tudo se submete à ideia de um Gesamtkunstwerk experiencial. Iñárritu quer fazer-nos vivenciar o suplício do batedor através das imagens soberbas de Lubezki, da banda-sonora discreta de Ryuichi Sakamoto, Alva Noto e Bryce Dessner, das paisagens de cortar a respiração de uma América primitiva. Mas para que isso resultasse num grande filme, era preciso que ele se interessasse pelas suas personagens.
Sim, O Renascido está uns bons furos acima de Babel ou de Birdman, mas desbarata muito rapidamente o capital de simpatia daquela primeira hora no calculismo virtuoso, e muito convencido do seu próprio talento, que lhe reconhecemos já há uns anos. Não é Herzog nem Malick quem quer.