Como é que se sustém um carro no ar preso a duas listas telefónicas?
Pela primeira vez, há um modelo teórico que explica cabalmente o mistério da inseparabilidade de duas listas telefónicas que suportam um carro. O segredo está no factor de Hércules.
Acha que consegue separar duas listas telefónicas cujas folhas estejam intercaladas umas nas outras? Até parece fácil, mas na realidade abundam vídeos na Internet a mostrar que é uma façanha quase impossível. Explicar este fenómeno foi precisamente o desafio proposto a um grupo de físicos por um programa de divulgação científica na televisão francesa, que acabou por levá-los a encontrar a solução do enigma.
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Acha que consegue separar duas listas telefónicas cujas folhas estejam intercaladas umas nas outras? Até parece fácil, mas na realidade abundam vídeos na Internet a mostrar que é uma façanha quase impossível. Explicar este fenómeno foi precisamente o desafio proposto a um grupo de físicos por um programa de divulgação científica na televisão francesa, que acabou por levá-los a encontrar a solução do enigma.
A equipa de físicos franceses e canadianos analisou o fenómeno recorrendo a várias experiências e desenvolveu um modelo matemático que o explica, descobrindo por que razão a força necessária para separar as duas listas telefónicas aumenta drasticamente à medida que aumenta o número de folhas intercaladas. O aumento dessa força pode calcular-se através de um parâmetro que a equipa chama agora informalmente "factor de Hércules".
A descoberta foi publicada na conceituada revista científica Physical Review Letters e não só explica esta curiosidade como também se aplica a outras situações que envolvam atrito noutras estruturas intercaladas.
A dificuldade em separar duas listas telefónicas, unidas pelas suas folhas dispostas alternadamente umas nas outras – como se fossem cartas de jogar baralhadas –, puxando-as pelas duas lombadas, era o tema de um episódio do programa On n'est pas que des cobayes (Não Somos Só Cobaias). Neste programa do canal de televisão France 5, também transmitido na RTP2 na rubrica Desalinhados aos sábados e domingos com o nome Testes em Série, fazem-se experiências científicas para confirmar ou desmentir mitos populares.
“É espectacular que se parta de um show televisivo para o grande público para fazer nova ciência”, comenta o físico Carlos Fiolhais, da Universidade de Coimbra e divulgador de ciência, a propósito deste trabalho. “[Habitualmente] a TV tenta apresentar a ciência que é feita. Neste caso, foi totalmente ao contrário. A divulgação é que suscitou nova ciência.”
Naquele episódio, vê-se que nem os homens mais fortes de França conseguem separar duas listas telefónicas com as folhas intercaladas, nem mesmo com todos os elementos da equipa do programa a ajudar. De facto, as listas nem sequer se separam quando são usadas para içar com um guindaste um carro de 600 quilos até seis de metros de altura.
Para explicar o fenómeno e determinar a força necessária para separar as listas unidas dessa forma, os físicos fizeram algumas experiências científicas no programa. “Começámos a trabalhar neste problema pouco depois do convite para participar no programa”, conta ao PÚBLICO Frédéric Restagno, do Centro Nacional da Investigação Científica francês (CNRS) na Universidade Paris-Sul, que coordenou o trabalho.
Sabia-se que a resposta ao enigma envolvia o atrito – a força que contraria o deslizamento de uma superfície sobre outra e que já tinha sido descrita por Leonardo da Vinci. “Fui convidado para ir ao programa explicar as forças de atrito”, explica o investigador.
Porém, Frédéric Restagno apercebeu-se de que este fenómeno não estava completamente explicado. E, juntamente com outros físicos experimentalistas como ele, físicos teóricos e um físico especialista em papel, decidiu estudar o fenómeno: fizeram mais experiências e desenvolveram o modelo teórico que explica as observações.
“Uma das características da força de atrito é que, para deslocar objectos, temos de aplicar uma força tangencial [paralela às folhas] proporcional à força de pressão exercida pelos objectos um sobre o outro”, explica Frédéric Restagno.
Os investigadores queriam então perceber qual era a origem da pressão sobre as folhas. O que descobriram foi que, quando se puxa pelas lombadas para separar as listas telefónicas, uma pequena parte dessa força é convertida em pressão entre folhas, devido ao desvio ocorrido para os lados das folhas exteriores. O que dificulta a separação das duas listas. Ao puxar-se com mais força, está-se também a aumentar a pressão entre as folhas, o que por sua vez aumenta a sua resistência ao movimento. Ou seja, aumenta-se o atrito.
O que é o factor de Hércules
No fim do artigo científico, a resposta é apresentada numa equação matemática simples. “Ficámos surpreendidos ao ver até que ponto o nosso modelo era robusto e simples”, diz Frédéric Restagno.
Na equação, vê-se que a força necessária para separar os livros aumenta consideravelmente com o número de folhas. “Somam-se todas as forças exercidas sobre todas as folhas, o que leva a uma amplificação”, acrescenta Frédéric Restagno.
A equação inclui o factor de Hércules, que depende do número de folhas, do seu atrito, da sua espessura e da parte das folhas que não está sobreposta. O site da revista humorística Improbable Research – que fala da investigação científica “improvável” e que atribuiu os IgNobel, prémios que distinguem a ciência mais divertida e inacreditável “por fazer as pessoas rir primeiro e pensar depois” – é que chamou a esse parâmetro "factor de Hércules", numa referência ao herói da mitologia grega conhecido pela sua força. E os investigadores do projecto adoptaram o nome.
E quanto tempo aguentou o carro de 600 quilos suspenso pelas listas telefónicas? “Como 600 quilos não são suficientes para começar a mover as folhas, o carro poderia ficar suspenso o tempo que quiséssemos. Como as duas listas telefónicas têm quase 1000 páginas [cada uma], a força para começar a fazê-las deslizar é enorme”, responde Christophe Poulard, do CNRS na Universidade Paris-Sul, e que também participou no programa televisivo e no artigo.
Mas, apesar de as folhas das listas telefónicas não deslizarem entre si, tal não significa que o carro fique suspenso “ad aeternum”. No programa televisivo vemos que aguenta mais de um minuto no ar, e depois é largado. “Porém, a força do papel não suportaria aquele peso e as folhas começar-se-iam a rasgar”, acrescenta Christophe Poulard.
Seja como for, está explicado por que razão duas listas telefónicas conseguem suster um carro no ar. Este resultado também se aplica a outros fenómenos, frisa Frédéric Restagno. “Este tipo de atrito é importante para compreender a força mecânica de cordas feitas de fibras. Podemos também imaginar que este tipo de amplificação é importante no caso de fibras musculares ou de fibras têxteis.”
Texto editado por Teresa Firmino