“Mein Kampf”: por que é importante reeditá-lo

O próprio "mal" pode e deve ser "publicado", ele integra o "ser humano", e tudo o que faz parte da nossa "verdade" deve tornar-se público

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Michael Dalder/Reuters

A obra icónica de Hitler é finalmente reeditada, isto após ter cessado a proibição da sua publicação na Alemanha, e, como já se esperava, uma polémica vê-se nascente, e ela vem contrapor, mais uma vez, o valor da Liberdade de expressão ao valor do controlo "sensato" dessa liberdade, em nome de um suposto respeito pela Ética.

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A obra icónica de Hitler é finalmente reeditada, isto após ter cessado a proibição da sua publicação na Alemanha, e, como já se esperava, uma polémica vê-se nascente, e ela vem contrapor, mais uma vez, o valor da Liberdade de expressão ao valor do controlo "sensato" dessa liberdade, em nome de um suposto respeito pela Ética.

Mas, note-se, a "Ética" não se perfaz somente do punhado de imperativos "espirituais" que a civilização firmou desde há alguns milénios, ela também inclui um aspeto saturniano, ou, pelo menos, "individualista", e, no seu seio, muitos autores geraram obras que podem ser consideradas imorais. Por exemplo, a obra de Nietzsche tem sido bastas vezes demonizada, o autor salientou a necessidade de uma ética do "nobre", afecta a uma visão quase "darwinista" do "ser humano". Darwin teve o condão de desespiritualizar parcialmente a Humanidade, de lhe conceder a máxima da perseverança corpórea. A par da óptica "materialista", Adam Smith tem sido igualmente atido por "imoral" por parte dos "idealistas". Já os "liberais" foram francos críticos do Idealismo e do Utopismo. Popper considerava Platão, Hegel e Marx inimigos da "sociedade aberta". Berlín referiu-se a Rousseau como "inimigo da liberdade". Por seu lado, "materialistas dialécticos", socialistas, consideram o "liberalismo" odioso, eticamente insustentável. Mas a obra de Marx não deixou de ceder o seu contributo, decerto involuntário, à visão idealista do Fascismo (para não falar do óbvio, do Utopismo comunista). Obras como "A Questão Judaica" ou o "Manifesto do Partido Comunista" já foram consideradas subversivas, e, cambiando o contexto político, podem sempre voltar a constar de um "índex" de obras proibidas.

O mundo das ideias foi continuamente rico e sempre existiram obras para todos os vínculos ideológicos possíveis. Isso inclui os anarquistas e os niilistas. E também os relativistas radicais, eu incluído, que defendem, de modo vário, que todas as ideias possuem igual direito a existir, e que é o contexto que faz com que algumas teorias sejam demonizadas ou censuradas, enquanto outras são deificadas. A constante destas ideias assenta na Liberdade de existirem. Os efeitos desta liberdade podem ser de várias espécies, mas quase sempre requerem outras variáveis — culturais e epocais — para que se tornem arriscados para um coletivo. A própria noção de "mal" é relativa e, para muitos, o Holocausto carece de uma versão "genuína", livre da imagem semita. Mas, quiçá exagerando, diria que o próprio "mal" pode e deve ser "publicado", ele integra o "ser humano", e tudo o que faz parte da nossa "verdade" deve tornar-se público, senão arte, seja porque os valores são relativos, seja porque existe um efeito preventor no processo de documentação e publicação, seja porque subsiste um direito de respeitar as minorias ideológicas (que, mais tarde, podem vir a constituir-se enquanto "maiorias") integrantes de um contexto onde certa moral possui — temporalmente? — o domínio.

Depois da liberdade de publicação, vem a "liberdade de escolha" — uma determinação contextual — e "proibir" é um modo de fazer falir essa liberdade, se bem que, por vezes, torna o "idealista" mais ávido na procura, como na defesa da sua crença ideológica e/ou política.

Não sei se é sensato colocar o "Mein Kampf" na linha das obras dos filósofos, como do Idealismo. Poderemos, por exemplo, comparar Hitler com Hegel ou Marx? Essa analogia pode ter por base os potenciais efeitos sociais e políticos das obras? E como prever tais efeitos? Não é, de todo, possível fazê-lo. Mas é possível pensar no efeito corrosivo de qualquer forma de censura, independentemente do que esteja em jogo. Em nome da liberdade, façamos mais por ofender do que por proteger; o paternalismo acaba por ofender muito mais, e por proteger muito menos. Se proibimos, se olhamos para o lado, se condenamos, se nos exercitamos na congeminação das supostas consequências morais de determinada "publicação", estamos, ainda assim, a projectar uma moral específica, o cárcere que só as ideias podem esbater. Haverá sempre um risco inerente ao pensamento — e, note-se, as obras de Hegel, Marx e Nietzsche influenciaram a obra de Hitler —, mas a questão moral não pode nem deve limitar o seu exercício, ela conflui postumamente; tudo em nome da transformação indefectível do "ser humano", do "processo Histórico" que deve seguir o seu livre e imprevisível (?) rumo, em oposição à sua confortável estabilização. Fala o liberal, o condicionado, ainda assim. E se existir um perigo calculável, facilmente previsível? Poderíamos "controlar", "castrar", mas estaríamos a adiar o inevitável. A Humanidade age sempre e responde por isso. O que hoje violenta amanhã é violentado.