A palhaçada
Só mesmo quem acredita que o Estado é o alfa e o ómega da existência humana pode dispor da vida dos cidadãos com a vergonhosa leviandade que o ministério da Educação acaba de exibir.
Eu tenho quatro filhos, três deles em idade escolar. A Carolina tem 11 anos e está no 6.º ano. O Tomás tem nove e está no 4.º ano. O Gui tem sete e está no 2.º ano. Na passada sexta-feira, fiquei a saber que os meus dois filhos que iam ter exames daqui a cinco meses afinal não vão ter, e que o meu filho que não ia ter exames daqui a cinco meses afinal vai ter uma prova de aferição. A isto se chama uma colossal palhaçada.
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Eu tenho quatro filhos, três deles em idade escolar. A Carolina tem 11 anos e está no 6.º ano. O Tomás tem nove e está no 4.º ano. O Gui tem sete e está no 2.º ano. Na passada sexta-feira, fiquei a saber que os meus dois filhos que iam ter exames daqui a cinco meses afinal não vão ter, e que o meu filho que não ia ter exames daqui a cinco meses afinal vai ter uma prova de aferição. A isto se chama uma colossal palhaçada.
Na SIC, Marques Mendes afirmou que fazer estas alterações a meio do ano lectivo era uma “falta de respeito por professores e directores de escolas”. Os professores e os directores de escolas que me perdoem: isto é, em primeiro lugar, uma absoluta falta de respeito para com os alunos e as suas famílias. E como o ministro da Educação deve perceber imenso de bioquímica, de oncologia e de como dar graxa à Fenprof, mas muito pouco do que significa gerir uma família e educar filhos, eu assumo a patriótica missão de o tentar esclarecer.
Numa família, explicamos às crianças que a escola é o seu trabalho, e que ele deve ser levado tão a sério quanto os pais levam o seu. Explicamos que a roupa, a comida e os brinquedos chegam sem qualquer esforço da parte deles, e que em troca os pais só pedem bom comportamento e empenho escolar. Explicamos que a mesma energia que é investida nos momentos de lazer é para ser aplicada nos momentos de trabalho. E ao explicarmos tudo isto, tentamos criar desde cedo uma cultura onde felicidade e exigência sejam actividades compatíveis (sim, Catarina Martins, é possível!). Um ano de exames e de fim de ciclo é sempre um ano diferente, e trabalha-se para isso durante nove meses. Para uma criança empenhada na escola, o ano lectivo que está a frequentar não é, como para um adulto licenciado, apenas um de entre 15 anos de estudo – é a vida dela, toda, inteira, naquele momento.
E essa vida planeia-se, desde o início do ano lectivo. Por incrível que possa parecer a Tiago Brandão Rodrigues e à frente de esquerda que nos governa, há pais que entendem que a educação que o Estado propõe aos seus filhos não é toda a educação que querem para eles. Os meus filhos frequentam a escola pública, mas fora dela estudam música e inglês, que têm avaliações próprias. Essas avaliações articulam-se com as da escola, e há opções que se tomam logo em Setembro em função dos exames de Maio. Mais: a escola tem também implicações profundas na vida de lazer das famílias. Há pais que viajam com os filhos, marcando férias com meses de antecedência – e para isso contam que o calendário escolar seja respeitado (a prova de aferição do oitavo ano acaba de ser marcada para a semana seguinte ao fim das aulas). Sim: há vida para além do Estado.
Reparem que deixo propositadamente de fora deste texto as vantagens dos exames de 4.º ou 6.º ano, o número de alterações às avaliações do ensino básico desde o ano 2000, a pressa e a opacidade com que esta nova revolução foi feita ou as inenarráveis contradições socialistas. O meu argumento é prévio a tudo isso – é sobre o profundo desrespeito que o Estado dedica aos seus cidadãos, tenham eles sete ou 77 anos. Invocar razões ideológicas para a direita preferir avaliar crianças no 4.º, 6.º e 9.º anos e a esquerda no 2.º, 5.º e 8.º é absolutamente patético. A única ideologia está no método: só mesmo quem acredita que o Estado é o alfa e o ómega da existência humana pode dispor da vida dos cidadãos com a vergonhosa leviandade que o ministério da Educação acaba de exibir.