Viagens dentro do loop no Festival Temps d'Images

O Retrato de Ulisses, de João Cristóvão Leitão, é o vencedor da primeira edição do Loops.Lisboa, a nova secção do festival.

Foto
O Retrato de Ulisses, de João Cristovão Leitão

“Ulisses olhou à sua volta. A biblioteca encontrava-se vazia. Foi então que, ávido, leu e releu as últimas linhas do manuscrito. Eis a minha terrível descoberta: o tempo é infinito e a matéria finita.” Estamos entre os segundos 44 e 53 do minuto dois de O Retrato de Ulisses, e a personagem está como que enclausurada num naco de praia que lhe serve de cenário, filmada num único plano-sequência e com recurso constante ao mesmo material imagético (máquina de escrever, estendal com manuscritos pendurados, molduras que se amparam numa estátua, a voz off, o clique metálico de um projector de slides). Foi este loop de 5’33’’, “uma vertiginosa viagem pelo tempo e pela literatura” como o anuncia o autor, João Cristóvão Leitão, a vencer a edição inaugural do Loops.Lisboa/Festival Temps d’Images, feito em parceria com o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC).

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“Ulisses olhou à sua volta. A biblioteca encontrava-se vazia. Foi então que, ávido, leu e releu as últimas linhas do manuscrito. Eis a minha terrível descoberta: o tempo é infinito e a matéria finita.” Estamos entre os segundos 44 e 53 do minuto dois de O Retrato de Ulisses, e a personagem está como que enclausurada num naco de praia que lhe serve de cenário, filmada num único plano-sequência e com recurso constante ao mesmo material imagético (máquina de escrever, estendal com manuscritos pendurados, molduras que se amparam numa estátua, a voz off, o clique metálico de um projector de slides). Foi este loop de 5’33’’, “uma vertiginosa viagem pelo tempo e pela literatura” como o anuncia o autor, João Cristóvão Leitão, a vencer a edição inaugural do Loops.Lisboa/Festival Temps d’Images, feito em parceria com o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC).

“O Temps d’Images”, que vai na 13.ª edição, “ é um projecto completamente dedicado à nova criação e conseguiram-se agora duas vitórias que são uma espécie de corolário desta missão: uma Open Call para levar novos dramaturgos e criadores a um palco institucional como o Teatro Nacional D. Maria II, e uma outra para este conceito do Loops.Lisboa, que construímos com a Irit Batsry [artista visual e co-fundadora do Temps d'Images]”, explica António da Câmara Manuel, da produtora DuplaCena, responsável pelo festival.

Entre Agosto e finais de Setembro do ano passado, a Open Call para o Loops.Lisboa rendeu 117 trabalhos seleccionados por um júri presidido por Emília Tavares (do MNAC) e composto por Irit Batsry, Alisson Avila (fundador e curador do festival Cine Esquema Novo) e Conrado Uribe (director do festival Loop Barcelona, uma feira comercial de videoarte). Dessa mais de uma centena de candidatos a um prémio de 2000 euros ficaram três exemplos contemporâneos de reflexão sobre o loop: O Retrato de Ulisses (João Cristóvão Leitão), Cascade (João Pedro Fonseca) e Travel Shot (Francisca Manuel e Elizabete Francisca).

“O interessante nestes três finalistas é que cada um abordou a questão do loop de forma muito distinta: um mais performativo e ligado à videoarte, no sentido da obra de Bill Viola; outro apresentado como travel shot e numa clara referência ao trabalho de Chantal Akerman; e um terceiro que é um híbrido inserido numa trilogia de retratos que João Leitão já vinha a trabalhar há algum tempo”, esclarece Irit Bastry. O vencedor já tinha sido distinguido com o Prémio Público nas edições de 2013 e 2014 do Festival FUSO – Anual de Vídeo Arte Internacional de Lisboa e ganhou a Melhor Curta-Metragem do Queer Lisboa em 2014.

Foto
Cascade (2015), a obra com que João Pedro Fonseca se candidatou ao Loops.Lisboa DR
Foto
Travel Shot (2015), o trabalho de Francisca Manuel e Elizabete Francisca para a primeira edição do Loops.Lisboa e um dos três finalistas em exibição no MNAC DR

 

Uma ideia de circularidade

"A estrutura de loop não é necessariamente repetitiva: implica sempre uma diferença e esta tanto pode ser real como aquela que é descoberta pelo espectador”, frisou Delfim Sardo na conferência O Loop na linguagem do cinema e videoarteque antecedeu esta terça-feira o anúncio do vencedor do Loops.Lisboa. Para o curador, crítico e professor de arte contemporânea, a ideia de circularidade está tanto na pintura de panorama do século XIX, "pinturas sem princípio nem fim, circulares", como no postulado do filósofo Gilles Deleuze de que "as ilhas se vão definindo à medida que as circulamos" (A Ilha Deserta, 1953-1974) ou na última frase de Finnegans Wake, de James Joyce, "que continua na primeira frase do livro".

É a mesma noção de circularidade que leva Irit Batsry a falar nas redes sociais como um never ending loop. Dá o exemplo do anúncio da morte de David Bowie, "que esteve num loop contínuo no Facebook, um loop aberto onde entram várias interferências", da música ao testemunho pessoal de cada um num post. A artista visual de origem israelita recorda a lógica cíclica e de repetição do loop como o início da imagem em movimento: “Pensei que seria muito interessante perceber conceptualmente como início e fim se juntam e regeneram.Por isso, as três obras finalistas do Loops.Lisboa, que podem ser vistas no MNAC até 24 de Janeiro, ganham identidade própria quando expostas num espaço museológico. E uma competição como “o Loops.Lisboa pode servir de barómetro do que melhor se faz nesta área de linguagem de videoarte”, remata Emília Tavares.