Treze meses que mudaram o mundo de Bob Dylan
Em curtos 13 meses, gravou três dos discos mais importantes da música popular urbana. The Cutting Edge põe-nos no centro de onde tudo aconteceu. Seis discos que são um filme. Uma história fascinante.
“A cena da música folk fora como um paraíso que eu tinha que abandonar, como Adão teve de abandonar o jardim. Era simplesmente demasiado perfeito. Dentro de anos desabaria numa tempestade de merda. As coisas começariam a aquecer. Sutiãs, cartões de recrutamento, bandeiras americanas, até pontes – todos sonhavam pegar-lhes fogo. A alma nacional ia mudar e em muitos aspectos seria semelhante à Noite dos Mortos Vivos”.
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“A cena da música folk fora como um paraíso que eu tinha que abandonar, como Adão teve de abandonar o jardim. Era simplesmente demasiado perfeito. Dentro de anos desabaria numa tempestade de merda. As coisas começariam a aquecer. Sutiãs, cartões de recrutamento, bandeiras americanas, até pontes – todos sonhavam pegar-lhes fogo. A alma nacional ia mudar e em muitos aspectos seria semelhante à Noite dos Mortos Vivos”.
Em Crónicas Vol. 1, autobiografia editada há 12 anos e frustrantemente sem segundo volume à vista, Bob Dylan contextualizava daquela forma a sua transformação de bardo da canção política e do activismo folk, de voz de uma geração, em criador sem amarras, eléctrico como eléctricos eram os tempos, livre nas imagens poéticas alucinadas, premonitórias, tocantes, sarcásticas, que lhe jorravam da cabeça e que traduzia, livre igualmente, em som. Continuava: “A estrada que tínhamos pela frente seria traiçoeira e não sabia onde é que aquilo ia parar, mas meti por ela. Um mundo estranho acabaria por se revelar, um mundo tempestuoso com contornos desenhados pelos relâmpagos. Muitos não chegaram a perceber o que se estava a passar. Estava tudo em aberto. Uma coisa é certa, não só não era governado por Deus como também não era pelo diabo”. Foi com estas frases que se despediu do livro. Concentremo-nos na penúltima. “Estava tudo em aberto” – agora sabemos exactamente, precisamente, como percorreu a estrada que o levou onde sabemos.
Bringing it All Back Home, Highway 61 Revisited e Blonde On Blonde. Editados entre 1965 e 1966, os três albuns, o último deles duplo, representam uma espécie de Santo Graal da discografia de Bob Dylan, o momento em que tudo nele se transformou de forma radical, arrastando consigo no processo o restante universo da música popular urbana. Cinco décadas passadas, a história é bem conhecida. Dylan a pegar na guitarra eléctrica e a rodear-se de banda completa, para horror dos puristas folk. Dylan a absorver de forma febril tudo o que o rodeava, passado e presente, sons, imagens e palavras. Chuck Berry, Beatles e Stones, Kurt Weill e Robert Johnson, Arthur Rimbaud e Jack Kerouac. Os jornais do dia, as lendas do passado e as palavras ouvidas na rua. Shakespeare ao fundo da rua em Memphis, Jesse James em espírito num blues fora-da-lei. Um homem magro a olhar em volta, paralisado, enquanto o seu mundo desaba em redor. Johanna a aparecer-nos em sonhos, uma e outra vez. Tudo pedrado para ver mais claramente. “How does it feel to be own your own, with no direction home, like a complete unknown, like a rolling stone?”.
Foi entre 1965 e 1966. Nem dois anos completos. Bem menos que dois anos, na verdade. 13 meses para criar os três álbuns onde encontramos Subterranean homesick blues, It’s alright ma, I’m only bleeding, Like a rolling stone, Ballad of a thin man, Stuck inside the mobile with the Memphis blues again, Visions of Johanna ou Love minus zero/No limit, cada uma delas uma canção que a esmagadora maioria dos restantes mortais não se importaria de esperar uma vida para compor (só uma delas e já teria valido a pena).
Um grande plano revelador
A colecção Bootleg Series, iniciada em 1991, tem-nos revelado os bastidores da criatividade de Dylan (como nas Wittmark Demos, registadas entre 1962 e 1964), tem proporcionado um olhar abrangente sobre um período específico (a totalidade das míticas Basement Tapes gravadas com a The Band em 1969) ou o confronto com a realidade de momentos tornados mitologia (o concerto no Manchester Trade Hall onde lhe atiram desde o público acusação bem conhecida: “Judas!”, ouviu-se). O 12º volume, editado no final do ano passado, é a história dos 13 meses que Dylan passou entre Nova Iorque e Nashville a gravar, exageremos que, neste caso, o exagero não andará longe da realidade, a sua santíssima trindade. Ter esta informação, sem mais, seria suficiente para gerar todo o entusiasmo e curiosidade. Ouvir o que compilou o manager de Dylan, Jeff Rosen, torna tudo mais interessante.
O cuidado posto nas edições anteriores das Bootleg Series e a qualidade do que nelas encontramos já as colocavam alguns degraus acima do habitual neste tipo de lançamentos, que servem genericamente para alimentar o voyeurismo e o desejo de novo material por parte de fãs e coleccionadores. Mas esta não é decididamente uma colecção de versões embrionárias, gravações alternativas ou sobras de estúdio que se ouvirão uma vez, e com curiosidade decrescente à medida que avançamos, antes de se guardar a caixa na prateleira de onde não mais sairá. Tem por título The Cutting Edge (“o pioneiro”, “o inovador”) e o título assenta-lhe na perfeição – mas, na verdade, isso já sabíamos.
Na “deluxe edition” composta por seis CDs, a mais recomendável para mergulhar com peso e medida nesta tão curta quanto intensa viagem de Dylan (existe também uma versão em CD duplo e uma edição limitadíssima que reúne a totalidade das gravações em 18 discos), encontramos um CD dedicado inteiramente a Like a rolling stone. Quando terminam as 20 faixas que o compõem não manifestamos o mínimo sinal de tédio: acabámos de testemunhar, passo a passo, entre avanços consistentes e desvios para becos sem saída, o que é essa coisa tão fugidia e tão trabalhosa a que se chama inspiração. Dylan a inventar o seu caminho, sem certeza de conhecer os terrenos que pisa. Nesse sentido, é tanto uma colecção de música tocada pelo génio quanto um filme onde longas panorâmicas se vão fechando até se transformarem num grande plano revelador.
Logo a início, ouvimos Dylan: “Gravo qualquer canção desde que a consiga fazer pela primeira vez”. O seu principal interesse era captar a intensidade do momento, impedindo que a repetição eliminasse a vitalidade da interpretação. Isto não quer dizer, porém, que as canções fossem abandonadas rapidamente caso não fossem “capturadas” no imediato. Nestas gravações registadas com o produtor nova-iorquino Tom Wilson, homem da soul e do jazz, primeiro, e com Bob Johnston, lenda de Nashville, cidade da country, depois, vemos alguém em procura constante, ensaiando as mais diversas variações para as canções – Desolation row podia ter sido um gospel espectral guiado pelo piano, Mr. Tambourine man foi ensaiada com banda completa (“a bateria está a enlouquecer-me”, explodirá Dylan, com toda a razão), Like a rolling stone é moldada laboriosamente até atingir o seu estado final, Just like a woman, balada dolente, ouve-se aqui enquanto groove rock’n’roll bem acelerado.
Ao longo dos seis discos, nunca chegamos a ouvir as versões que todos conhecemos. Escondidos a um canto da sala como moscas na parede, acompanhamos todo o processo. Uma viagem impressionante pelo modus operandi de um génio criativo no auge. Dylan em roda livre a moldar a música com a banda, com todas as certezas mas aberto igualmente a todas as sugestões e imprevistos. Entre os deliciosos diálogos com os produtores – o humor dos títulos de canções inventados no momento (Rainy day women #12 & 35, gravada ao primeiro take, é registada como A long-haired mule and a porcupine here; I’ll keep with me é Bank account blues) -, os excertos que duram pouco mais que um minuto mas que indicam um passo mais a caminho do destino que se vislumbra ao longe, as versões tão diferentes mas que, inspiradas pelo ambiente e pelo tempo, soam tão felizes e luminosas como aquelas que ficarão preservadas em disco, descobrimo-nos num terreno especial e a que raramente temos acesso.
Apoiado em músicos como esse extraordinário guitarrista que foi Mike Bloomfield ou o pianista Paul Griffin, ouvindo Al Kooper (que se sentou n órgão quando ninguém o convidara e que se tornou, depois, indispensável ao som criado nestas sessões) ou os rotinados e infalíveis músicos de sessão de Nashville que gravariam Blonde on Blonde, Dylan chegaria por fim ao que pretendia. Pelo caminho, testou a The Band apenas para perceber que a chama e inquietude da então jovem banda seria perfeita para o acompanhar ao vivo, mas não para a subtileza e eclectismo necessários ao trabalho em estúdio (a versão trôpega e indecisa de Visions of Johanna confirma-o claramente).
“Conseguia perceber que o tipo de canções para as quais me inclinava a cantar não existiam e comecei a brincar com a forma, quis percebê-la – quis fazer uma canção que transcendesse a informação nela contida, as personagens e o enredo”, escreveu nas Crónicas Vol. 1, descrevendo o impacto provocado por ver Pirate Jenny, de Kurt Weill, cantada numa peça de Brecht. Quando a ouviu pela primeira vez ainda era o rapaz de cabelo cortado curto, camisa operária e expressão séria, austera, que vemos na capa do seu terceiro álbum, The Times They Are a-Changin’. Quando gravou o que ouvimos em The Cutting Edge, parecia irradiar luz e cor, com a guitarra eléctrica a tiracolo, a harmónica pendurada na boca e o cabelo crescendo rebelde e apontando em mil direcções. Tinha 25 anos quando terminou de gravar Blonde on Blonde. Não tinha feito uma das tais canções que “transcendessem”. Tinha gravado dez, vinte, trinta dessas canções. Agora sabemos exactamente como chegou até elas.