Declaração de voto & inimputáveis
1. Depois de ver Marcelo Rebelo de Sousa na capa do PÚBLICO, pensei que este domingo seria boa altura para uma declaração de voto. Vi Marisa Matias uma única vez, num debate sobre o Afeganistão em 2009, ano em que foi eleita para o Parlamento Europeu. Essa foi também a única vez em que me referi a ela num texto (para fazer um reparo a que ela respondeu com um esclarecimento afável). A acção como eurodeputada no campo da saúde levou a que fosse escolhida pelos seus pares como deputada do ano 2011. Focou-se ainda nas questões ambientais (área do doutoramento que fez em sociologia); na avaliação crítica do Banco Central Europeu enquanto membro da troika; nas relações com Síria, Líbano, Egipto e Jordânia e os direitos dos refugiados; ou na violência contra os territórios palestinianos ocupados. A dedicação que o seu percurso revela (talvez forjada quando começou a trabalhar aos 16 anos para ajudar nas contas da família, incluindo fazer limpezas ou servir à mesa) será um bom motivo para confiar nela. Mas a essa dedicação acresce uma qualidade de coragem pessoal que muito prezo e se torna evidente no actual terreiro lusitano em que galarotes competem com misantropos a ver quem é mais inimputável.
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1. Depois de ver Marcelo Rebelo de Sousa na capa do PÚBLICO, pensei que este domingo seria boa altura para uma declaração de voto. Vi Marisa Matias uma única vez, num debate sobre o Afeganistão em 2009, ano em que foi eleita para o Parlamento Europeu. Essa foi também a única vez em que me referi a ela num texto (para fazer um reparo a que ela respondeu com um esclarecimento afável). A acção como eurodeputada no campo da saúde levou a que fosse escolhida pelos seus pares como deputada do ano 2011. Focou-se ainda nas questões ambientais (área do doutoramento que fez em sociologia); na avaliação crítica do Banco Central Europeu enquanto membro da troika; nas relações com Síria, Líbano, Egipto e Jordânia e os direitos dos refugiados; ou na violência contra os territórios palestinianos ocupados. A dedicação que o seu percurso revela (talvez forjada quando começou a trabalhar aos 16 anos para ajudar nas contas da família, incluindo fazer limpezas ou servir à mesa) será um bom motivo para confiar nela. Mas a essa dedicação acresce uma qualidade de coragem pessoal que muito prezo e se torna evidente no actual terreiro lusitano em que galarotes competem com misantropos a ver quem é mais inimputável.
2. É preciso coragem pessoal para ser candidata à Presidência da República aos 39 anos num país machista como Portugal. Escandalosamente machista, não porque o machismo seja maior do que quando eu tinha 20 anos, mas porque continua vivo, e a acabar com vidas, e passaram 20 anos. Creio que aos 20 anos eu achava que o machismo era uma idiotice tão óbvia que se extinguiria por si. Fazer coisas como se ele não existisse era uma forma natural de o esvaziar. Eu estava grata a todas as mulheres que o tinham combatido até esse ponto em que se iria extinguir como os mamutes. Feminista parecia-me um termo histórico com uma aplicação contemporânea ao mesmo tempo insuficiente e ultrapassada. Agora, que acabo de fazer 48 anos, parece-me que o machismo acha sempre novas formas de ser contemporâneo, como bem mostraram as reacções boçais à lei antiassédio, deturpada para lei do “piropo”.
3. Entre uma mulher e um homem, não voto numa mulher por ela ser mulher nem apesar de ela ser mulher. A corrida pela nomeação do Partido Democrata entre Barack Obama e Hillary Clinton em 2008 é um bom exemplo. Eu teria escolhido Obama sem hesitar, tirei férias para poder estar no Harlem na noite das eleições, e esta semana, ao ver a determinação dele em controlar a presença de armas, voltaria a votar nele apesar de tudo, por exemplo, de Israel/Palestina. Há em Hillary Clinton algo de governanta ou general que nunca me interessou. Claro que se ela vier a enfrentar a ameaça Trump, todo o planeta devia poder votar nela, mas o facto de ser mulher não era nem é relevante para mim. O facto de Obama ser negro era e é relevante para mim. Talvez porque ser mulher não seja, de facto, tão relevante em Hillary como ser negro é, de facto, relevante em Obama. Em suma, ser mulher é relevante quando é relevante, parte de um todo político. No caso de Marisa Matias, é relevante, e relevado pela coragem que implica, na sua idade, enfrentar os que cantam de galo em 2016 e a reduzem à custa de insultos, disfarçados ou não de “piropos”. Ter a capacidade de enfrentar isso só os reduz ao que são, ruído de fundo.
4. Não vou dar tempo de antena aqui a boçais activos que ganham a vida com o que boçais passivos, ou só com menos oportunidades, acham que são piadas, e portanto não me alongarei nos exemplos mais lamentáveis do machismo português actual, gente que eu nem sabia que existia e que de repente saiu dos buracos, a chamar feminazis às mulheres. Os boçais fazem audiências, têm milhares de likes nas redes sociais e o meu voto para eles, como adepta do conhecimento empírico, é que possam ser objecto das violações sistemáticas que advogam enquanto sujeitos. Quem sabe passam a ganhar a vida de forma mais profissional.
5. Mas posso dar um exemplo de machismo português redux, tipo galarote circa 2015/2016. Depois de insultar os dez por cento de portugueses que votaram no Bloco de Esquerda, afirmando que esse voto se deveu às “carinhas larocas de Mariana Mortágua e Catarina Martins”, o colunista José Manuel Diogo (J.M.D.) conclui no Jornal de Notícias que agora nas presidenciais a cena se repete. “Marisa [Matias] começou por ser ‘Uma para todos’, num primeiro cartaz audacioso e quase atrevido; e agora é ‘A esperança conquista-se’ numa imagem de inusual proximidade entre político e eleitor, como se fosse ela o objeto de desejo.” Mas, hélas, “o que nas legislativas era um trunfo, nas presidenciais é um erro”, alerta J.M.D., explicando-nos: “Ser candidata a deputada é uma coisa muito diferente de ser candidata a Presidente da República. Os eleitores não procuram a mesma coisa e não decidem da mesma forma. É por isto que estes cartazes são um erro. E beleza desperdiçada.” Do ponto de vista do galarote, por serem mulheres, as candidatas do Bloco passam a ser consideradas apenas do ponto de vista do invólucro. De tanto ver o que quer, até viu mal a frase no cartaz: não é “Uma para todos”, mas “Uma por todos”. Dado que são mulheres, o galarote acha que o partido as vê e usa como ele as vê e usaria: iscos para galarotes como ele. É o insulto tipo cinco-em-um: Marisa Matias, Bloco de Esquerda, dez por cento dos portugueses, todos os deputados da Europa e a inteligência em geral.
6. Já os misantropos, by Jove, não se misturam com os galarotes. O caso-mor é, claro, Vasco Pulido Valente (V.P.V.), que quanto mais tempo passa fora do século XIX mais inimputável fica. O problema dele não é com as mulheres, é com a Humanidade, sobretudo a gigantesca massa dos não-ilustrados na Inglaterra do século XIX. Nesta quadra natalícia, V.P.V. escreveu que Marisa Matias, “uma ‘passionária’ de trazer por casa, distribui asneiras que só mostram a sua ignorância e a sua confusão”. Em crónica anterior, desfizera Catarina Martins, depois de elogiar Mariana Mortágua, aquele tipo de elogio-álibi que afia o insulto às demais. Ou seja, V.P.V. disse bem de Mariana Mortágua tornando mais mordaz o que tinha para dizer de Catarina Martins e Marisa Matias. Mas há uma forma alegre de olhar para isto: desde o século XIX (ou, pelo menos, desde que V.P.V. leu Adeus Princesa) que jovens mulheres de esquerda não o ocupavam tanto.
7. Marcelo Rebelo de Sousa é uma figura inequivocamente simpática, da capa do PÚBLICO à televisão. Já era quando foi candidato à Câmara de Lisboa, assisti ao mergulho no Tejo, impossível não simpatizar com ele. Desde então, o seu património mediático disparou na TVI até ao actual estado depois-de-Cavaco-que alívio. E a coragem de Marisa Matias também ficou evidente no frente-a-frente com o professor mais televisionado de Portugal, quando ele meteu os pés pelas mãos quanto ao BES e aos cortes nos salários e pensões. Confio na frontalidade tanto quanto desconfio de estar bem com deus e o diabo. Quem não sabe aprende, é questão de tempo, já isso de estar bem com deus e o diabo, como diria algum popular, vai muito da pessoa humana.
[Nota: Na semana passada, na versão impressa, havia uma confusão nas contas euros/escudos: as bolsas de criação literária eram de 250 contos, ou seja, 1250 euros, e não, claro, de 1250 contos. As minhas desculpas.]