Pietro Proserpio, o Gepeto da mecânica que habita numa livraria da Lx Factory

É simultaneamente artista cinemático e contador de histórias. Sempre esteve relacionado com a indústria têxtil mas desde cedo um outro destino insistia em atravessar-se no seu caminho: a paixão pela mecânica. Pietro Proserpio é fascinado pelo tempo e todas as suas peças têm uma história para contar.

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Da imaginação de Carlo Collodi nasceu Gepeto, um mestre carpinteiro italiano que conseguiu, com a ajuda de magia, dar vida a Pinóquio, um boneco de madeira. Pietro Proserpio também é italiano e também tem uma "fada madrinha" para dar vida aos seus objectos em miniatura: a mecânica. Todas as suas peças têm uma história que Pietro conta, alegremente, a quem o visita no último piso da Livraria Ler Devagar, na Lx Factory. Alia, nas suas peças, três factores: o tempo, a reciclagem e a cinemática.

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Da imaginação de Carlo Collodi nasceu Gepeto, um mestre carpinteiro italiano que conseguiu, com a ajuda de magia, dar vida a Pinóquio, um boneco de madeira. Pietro Proserpio também é italiano e também tem uma "fada madrinha" para dar vida aos seus objectos em miniatura: a mecânica. Todas as suas peças têm uma história que Pietro conta, alegremente, a quem o visita no último piso da Livraria Ler Devagar, na Lx Factory. Alia, nas suas peças, três factores: o tempo, a reciclagem e a cinemática.

“Não são engenhocas, são objectos cinemáticos”, corrige o artista. “Cinemático” é um conceito da área da física que designa algo relativo ao movimento mecânico. Mas Pietro, para além de considerar “que são cinemáticos por serem peças que têm movimento”, acrescenta-lhe significado e diz que são também objectos “que contam histórias e, portanto, estão ligadas ao cinema”.

O movimento dos objectos é produzido através da reciclagem de motores de carrinhos telecomandados ou de peças de computadores. “O que demora mais tempo a fazer é pensar a peça”, conta. “Olho para os objectos e penso que um dia vou fazer qualquer coisa com aquilo. Até que acordo de manhã e faço, demoro perto de um mês. Enquanto estou a pensar a parte mecânica surge uma história e, a partir daí, é a história que comanda o resto do objecto.”

Agora com 77 anos, nasceu e morou em Calolziocorte, uma aldeia que fica a cerca de 50 quilómetros de Milão. Veio para Portugal aos 11, em 1949, porque o seu pai passou a gerir uma fábrica de tecidos em Benfica. De Itália guarda memórias de um céu tingido de vermelho pelas bombas da II Grande Guerra. Em Lisboa, frequenta o Liceu Francês e é nestes tempos que conhece a sua mulher, portuguesa, que com ele apanhava o autocarro para a mesma escola. Nasceram duas filhas, depois quatro netos e foi para eles que construiu muitos "pinóquios" mecânicos, depois de os ter começado a fazer ainda pequeno, para si e para os colegas, desde barcos de guerra a refinarias a que conseguia dar sopros de vida.

"Agora voltei a fazer os brinquedos para mim”, diz. De Alvalade, onde mora, sai todos os dias em direcção à Lx Factory, em Alcântara, para a livraria que lhe cedeu um espaço – junto às rotativas que faziam parte da antiga gráfica Mirandela, localizada ali mesmo – onde exibe as suas construções. Desde 2009 que ali está sete dias por semana, das 15h às 20h, pronto para receber visitantes (e) curiosos.

Diz que já lhe chamaram de tudo: “Cientista, inventor, engenheiro, Professor Pardal e não quero dizer mais porque tenho a impressão de que me estou a lamber a mim mesmo”, ri-se.

Confessa que tem grande apreço por Itália, mas revela que gosta de tudo em Portugal. Menos de uma coisa: do tempo. “E não é o tempo da chuva, nem do sol, mas o tempo. As pessoas não chegam a horas e estão sempre a adiar tudo”, desabafa.

Um universo de miniaturas mecânicas
À pergunta “o que há de especial nas suas obras?”, Pietro responde: “Fazem sonhar.” Descreve que as pessoas, ao pisarem aquela área de exposição, sentem que entraram “numa cápsula do tempo que as faz sonhar e regressar à infância, faz com que saiam da vida real e entrem noutra dimensão”. Diz que há vezes em que os visitantes lhe começam a contar histórias de quando eram pequenos, e é por isso que sente que o seu trabalho consegue mesmo fazer com que quem o visita viaje no tempo.

E é natural que assim seja. Expostas em cima das enormes rotativas há pequenas máquinas de viajar no tempo, cidades futuristas no espaço, invenções que fazem chuva. Há uma máquina que só começa a funcionar quando lhe sopramos – um sopro de vida – e um ventilador chamado Amor porque às vezes também arrefece.

“Nas minhas peças há sempre um bocadinho de amor”, diz, contando as histórias de todas as peças que tem expostas, num misto de nostalgia e humor. A exposição de Pietro Proserpio permite ao visitante tornar-se viajante, não só do tempo, mas também da mente criativa do seu inventor.

Todos os objectos são feitos com materiais reciclados: peças de máquinas de café, chaves, pérolas do colar da irmã, uma caldeira de um ferro de engomar, peças informáticas ou partes de cadeiras. Tem um atelier em casa, onde faz e restaura os objectos cinemáticos, daí que o espaço no último piso da livraria seja somente de exposição.

Todos o procuram, de portugueses a estrangeiros, todos se deixam levar pelo fascínio das pequenas peças articuladas. “Faço visitas em italiano, português, francês, inglês e portinhol”, brinca. Quando chegou a Portugal só falava italiano, mas no Liceu Francês foi aprendendo a falar simultaneamente francês e português; mais tarde, aprendeu inglês e espanhol e quando começou a importar máquinas têxteis teve de as praticar, já que negociava com países estrangeiros. Uma experiência que se torna agora uma mais-valia.

Há obras e obras, há visitar e voltar
Rodeado pelos 40 mil livros da livraria Ler Devagar, Pietro aponta o seu preferido: A Teoria da Relatividade, de Albert Einstein. Queria também mostrar um do Leonardo da Vinci mas tinha sido roubado já pela segunda vez. “São duas das pessoas em que me inspiro para o meu trabalho: o Einstein pelo tempo e o da Vinci pelas invenções.”

Suspenso, vê-se um homem feito em cartão branco sentado num uniciclo, em movimento em direcção a uma lua em quarto crescente, tudo construído por Pietro. “Este é o sonhador, porque sonha chegar à Lua com o seu chapéu-de-chuva. Se chegasse à Lua já não era um sonhador, era um americano”, brinca. Também a bicicleta voadora suspensa logo após a entrada da livraria é da autoria de Pietro e é um dos elementos mais fotografados do espaço, que já foi destaque no The New York Times.

Todos os objectos têm nome. Só havia um monstro “que era demasiado feio para ter nome” mas uma espanhola pediu-lhe que lhe chamasse Lope. “‘Porquê Lope?’, perguntei-lhe. ‘É o meu chefe!’, disse ela.” Diz que já recebeu visitas de todo o mundo, da China à Rússia, França, Austrália ou Chile.

Outra das construções de Pietro é uma rotativa em miniatura, para assim conseguir explicar aos visitantes como funcionavam aqueles monstros da Mirandela que rodeiam os visitantes e agora permanecem silenciosos. De um lado, entram pequeninas folhas em branco; do outro, saem impressas com a primeira edição do Expresso depois do 25 de Abril. A gráfica que se transformou em livraria foi testemunha de inúmeras edições d'A Bola, O Independente, Diário Económico e até mesmo o PÚBLICO e também imprimiu boletins de Totobola. Pouco depois da viragem do século, as máquinas rotativas pararam para sempre, conta Pietro.

Em 2012, François Manceaux produziu uma curta-metragem de 22 minutos intitulada Pietro, artiste cinématique. “Gostei muito, porque além de falar de mim, o realizador pôs-me a falar sobre Lisboa”, nomeadamente dos quarteirões com casinhas pequenas e dos bairros degradados. Confessa que tem um fascínio pelas ruínas e pelas portas, por serem “portais de transição, que nos levam para outro espaço que, por vezes, não conhecemos; é um passo para o desconhecido”.

Na livraria, Pietro Proserpio é feliz. É um culminar de uma vida que nunca se afastou das máquinas. Porque sempre foram a sua paixão. Munido de um curso têxtil, passou a trabalhar na fábrica do pai e ficou alguns anos à frente do negócio, após a morte deste. Depois de reformado, “rejuvenesceu” e passou a dedicar-se unicamente aos seus objectos cinemáticos, mesmo que nunca os tivesse largado por completo ao longo de toda a sua vida. 

Texto editado por Ana Fernandes