No teatro de Richard Maxwell mandam a fragilidade e o desconforto
Richard Maxwell e os New York City Players visitam pela primeira vez Portugal em dose dupla. The Evening e Isolde, na Culturgest, de 11 a 16 de Janeiro, promovem o encontro com a banalidade com que Maxwell se tornou uma das mais elogiadas vozes do teatro contemporâneo norte-americano.
Certa manhã, depois de um sonho agitado, Richard Maxwell acordou não metamorfoseado num insecto, mas com o nome “Isolde” a chocalhar na cabeça. Não estava especialmente familiarizado com a história de Tristão e Isolda, mas decidiu investigar aquela deixa que, de repente, ficara a repetir em loop. Foi direito à wikipédia, pesquisou qualquer coisa mais, e não foi preciso cobrir-se de pó e de terra ao escavar a lenda medieval para reconhecer os óbvios pontos de contacto com a história de um triângulo amoroso que já então trabalhava – e que remetia igualmente para a disputa por uma mulher e para a ideia de posse. Há tempos que pensava já em três personagens – um arquitecto, um empreiteiro e uma actriz cuja memória começava a traí-la, esquecendo-se das suas falas – que servissem de mote a uma abordagem mais clássica à escrita para palco. Maxwell queria construir uma peça que “resistisse autonomamente enquanto história”, que desse provas de poder sobreviver sem a marca autoral que tem construído nos New York City Players – ao assinar os textos mas também ao moldá-los enquanto encenador.
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Certa manhã, depois de um sonho agitado, Richard Maxwell acordou não metamorfoseado num insecto, mas com o nome “Isolde” a chocalhar na cabeça. Não estava especialmente familiarizado com a história de Tristão e Isolda, mas decidiu investigar aquela deixa que, de repente, ficara a repetir em loop. Foi direito à wikipédia, pesquisou qualquer coisa mais, e não foi preciso cobrir-se de pó e de terra ao escavar a lenda medieval para reconhecer os óbvios pontos de contacto com a história de um triângulo amoroso que já então trabalhava – e que remetia igualmente para a disputa por uma mulher e para a ideia de posse. Há tempos que pensava já em três personagens – um arquitecto, um empreiteiro e uma actriz cuja memória começava a traí-la, esquecendo-se das suas falas – que servissem de mote a uma abordagem mais clássica à escrita para palco. Maxwell queria construir uma peça que “resistisse autonomamente enquanto história”, que desse provas de poder sobreviver sem a marca autoral que tem construído nos New York City Players – ao assinar os textos mas também ao moldá-los enquanto encenador.
Ao longo sobretudo da última década, Richard Maxwell impôs ao teatro norte-americano a sua peculiaridade dramatúrgica como uma celebração da normalidade. Apelidado por Ben Brantley, do New York Times, como “um dos raros autores de teatro experimental verdadeiramente originais” dos Estados Unidos, desde a sua passagem pela companhia Cook County Theater Department, de Chicago, que Maxwell rasgou o tradicional pacto tácito com o público que dita o fingimento de que as personagens pensam ou dizem cada fala pela primeira vez. Em palco, os actores podem parecer entediados, desinteressados de arrebatamentos, reduzindo a representação a um acto sem qualquer espectacularidade, afogada numa mundanidade quase asfixiante. “Foi muito revigorante perceber que podia dizer que não a esse contrato com os outros actores, com o público e comigo”, confessa Maxwell ao Ípsilon. “Foi uma verdadeira descoberta que trouxe na mala para Nova Iorque.”
Esse dizer “não” destina-se a “manter cada momento vivo”. “Muda o medo do conflito e transfere-o da peça para o público e para a sala”, explica Maxwell. “Ao fazer isso, sentimos uma pulsão vital e gostamos dessa sensação. Somos encorajados a ter um certo distanciamento no nosso comportamento em palco e a aplicar uma certa contenção.” É isso que encontramos nos actores habituais dos New York City Players: uma postura de quem parece ignorar a presença do público, uma actuação sem aparente jogo de sedução, os braços caídos ao longo do corpo e as falas atiradas de forma displicente. Tudo parece feito de um amadorismo confrangedor, tudo parece montado para falhar inapelavelmente, a qualquer segundo podem surgir tiradas sem sentido que não pretendem ser oblíquas decifrações do mundo. “Pensando naquilo que James Joyce fez em Ulisses”, contextualiza o autor, “ele pegou na mais antiga história da Odisseia e colocou-a num dia, 24 horas, em Dublin. Essa ideia de demonstrar que o quotidiano ou o dia-a-dia é muito próximo do épico ressoou em mim e sinto que vivemos isso de uma forma muito aguda actualmente.”
O que acontece nesta recusa de grandiosidade é que o teatro surge como lugar de desconforto, de hesitações, de acções mal medidas, esticado até um ponto tal que, mesmo quando voluntariamente se desmascara, pode tornar-se enternecedor – e não irónico ou satírico. Quando em The Evening (a primeira das duas peças que Maxwell apresenta na Culturgest, em Lisboa, entre 11 e 16 de Janeiro) a empregada de bar / prostituta dispara sobre o boxeur e o seu agente, espalha-se o sangue no peito dos dois e a morte seria o fatal destino para ambos. Mas continuam em palco, mesmo se mortos, e desembaraçam-se dos adereços que acabaram de espirrar um líquido vermelho ao som de cada disparo. “Após uma das apresentações, houve uma mulher a comentar que, apesar de ver o artifício removido, ficou surpreendida por continuar a sentir-se ligada afectivamente às personagens”, conta o autor. “Percebi o que ela quis dizer. Sinto que estamos a testar o artifício mas também a explorar aquilo que o teatro pode fazer.”
Acontece tão-somente que Richard Maxwell testa as possibilidades do teatro tornando-o matéria frágil. Como se a sua derradeira prova de vida acontecesse perante uma morte quase certa. E isso vale tanto para o falso sangue exposto com toda a naturalidade, quanto para Isolde, a actriz de memória em falência, que se esquece sempre das suas falas, como se vocalizasse a recusa de Maxwell de que o teatro seja forçado a existir apenas na recitação segura de um texto pré-fixado.
A fragilidade emana ainda desta atracção de Maxwell pela geometria triangular – Isolde e The Evening baseiam-se em três personagens – a que confessa não conseguir escapar. Para o autor, é uma questão de atear o fogo, gerar conflito entre as personagens, mas nunca abandonar uma escala íntima. “De facto, se tivermos uma cadeira com duas pernas não se aguenta em pé, mas se acrescentarmos uma terceira já é uma estrutura”, comenta. A vantagem é que com três pernas existe estrutura, mas a estabilidade não está assegurada. E é nessa instabilidade que Maxwell quer que o seu teatro viva.
Dolorosamente humano
Claro que o desenvolvimento desta linguagem teatral e, de alguma maneira, a sua fixação colocam Richard Maxwell perante a terrível evidência de que a força motriz (que o próprio define como “um anseio perpétuo”) pode perder fulgor e frescura ao tornar-se rotinada. Mesmo a assunção da fragilidade pode revelar-se armadilhada para uma postura em palco que, na sua origem, procurava o desconforto. Para Maxwell, “tão importante quanto manter cada momento vivo é a preocupação de não ser arrastado para uma postura confortável e de não esquecer aquilo contra o qual lutávamos originalmente”. Por isso, durante a preparação de Isolde, resolveu questionar os actores: “Tens medo de representar, tens medo de fingir?”, perguntou-lhes. “Afinal, se estivermos deliberadamente a conter uma história ou o seu impacto emocional – o que quer que isso seja –, consciente ou inconscientemente, nesse caso estaremos a falhar o nosso propósito inicial de manter o momento vivo.” E o momento está vivo, para que nos entendamos, quando em palco assistimos a algo que não parece uma sucessão ensaiada de acções e palavras.
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Isolde deve o seu nome à actriz que, casada com um empreiteiro abastado, convence o marido a investir na sua felicidade, contratando para isso um reputado arquitecto responsável pelo desenho da casa dos seus sonhos. E assim, de uma penada, está formado o triângulo amoroso – em que os homens desesperam pela satisfação das vontades de Isolde. A narrativa bastante linear de Isolde – ainda que, no final, a peça seja atropelada pela súbita mimetização da história de Tristão e Isolda – levou mesmo Maxwell a deixar o texto em pousio durante um período em que desconfiou ter cedido de mais a uma estrutura convencional. “Acho que senti o texto como sendo dolorosamente humano”, confessa. E ri ao admitir-se surpreendido por ter escrito tal peça. “Parece-me tão psicológica… É raro escrever uma peça em que as pessoas se olham umas às outras e em que há uma troca, em que se percebe aquilo de que falam e em que temos uma imagem mental deste tipo de pessoas.” Ao cair em terras naturalistas, Maxwell demorou a perceber que, ao invés de se estar a render a um padrão, estava, no fim de contas, a habitar um outro lugar de absoluto desconforto.
O desconforto estava também no começo de The Evening. Continua a estar, mas agora de uma forma menos explícita. Dividida em três segmentos distintos, a peça arranca com um monólogo (quase voyeurista de tão pessoal) que Maxwell escreveu sobre os últimos momentos de vida do seu pai e que faz deflagrar em palco sem anúncio prévio. Mas através da voz da actriz Cammisa Buerhaus, que logo se transforma em barwoman. Dir-se-ia que a partir daí toda a peça se precipita para a morte e que Cammisa procura com insistência um ajuste de contas. Mas aqui, como costuma acontecer com Maxwell, as linhas são difusas, tocam-se e afastam-se, seguimos personagens sem saber bem para onde nos levam e se nos largarão a mão no meio de um imprevisto nevoeiro, desaparecendo sem deixar quaisquer pistas.