Diz-me com quem falas
Quatro colegas de atelier pensam sobre a escultura contemporânea.
Conhecemo-los de outras exposições. Pertencem a gerações distintas, actuam de modo diverso no meio, e por isso a influência que podem exercer nos seus contemporâneos é sempre única. Alguns, como António Bolota, possuem mesmo já uma imagem de marca que diz respeito à disciplina habitual com que se exprimem. Outros, nem tanto. Talvez porque se exponham menos, porque apreciem um modo mais recatado de trabalhar e estar no meio da arte contemporânea. Nada disto significa que exista uma diferença qualitativa no trabalho dos quatro. Antes pelo contrário.
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Conhecemo-los de outras exposições. Pertencem a gerações distintas, actuam de modo diverso no meio, e por isso a influência que podem exercer nos seus contemporâneos é sempre única. Alguns, como António Bolota, possuem mesmo já uma imagem de marca que diz respeito à disciplina habitual com que se exprimem. Outros, nem tanto. Talvez porque se exponham menos, porque apreciem um modo mais recatado de trabalhar e estar no meio da arte contemporânea. Nada disto significa que exista uma diferença qualitativa no trabalho dos quatro. Antes pelo contrário.
Canal Caveira junta quatro escultores que possuem em comum o facto de partilharem atelier. A exposição, que decorre no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, perturba-nos e inquieta-nos desde logo pelo nome escolhido. Originalmente, Canal Caveira é nome de lugar, de uma antiga paragem na viagem Lisboa – Algarve em tempos de pré-autoestrada, que na época era famosa pelos seus restaurantes populares e hoje definha título. Mas um facto é certo: o Canal Caveira, na época do seu auge, colava-se quase de sem clientes. Não sabemos das razões que levaram os quatro colegas a escolher este forma exacta ao conceito de não-lugar, habitual na reflexão sobre o espaço operada pela arte contemporânea que se pretendia exilada instituições tradicionais de exposição, como o museu e a galeria.
Com poucas diferenças, é exactamente isto que se passa no edifício do Torreão Nascente. Rui Mourão, o director das galerias municipais, fala-nos do espaço possível para a exposição, mas não de todo num espaço site specific que tivesse condicionado nas suas próprias características físicas a existência, ou não, das obras. E conta como é no lugar do atelier que as relações entre cada obra, cada linguagem de cada artista, se modificam e transformam em contacto com a dos seu colegas de espaço. Quase que somos levados a associar aquilo que aqui se passa com a vivência habitual nas instituições de ensino artístico onde, como é sabido, o primeiro e mais importante interlocutor e crítico é o colega do lado, aquele que estabeleceu uma relação de igual para igual com cada um.
E a constatação primeira que se destaca desta exposição é a desse diálogo entre iguais. Um diálogo que não será em primeiro lugar o das palavras, mas o das formas. E que se sente na capacidade que cada artista aqui demonstra de ultrapassar a linguagem plástica que é a sua para interagir com as peças que, sendo de outro, habitam agora este espaço como antes habitaram as paredes e o chão do atelier. Uma peça de chão que usa o vidro estalado, e que associa este material pouco habitual com as curvas dóceis que estamos mais habituados a encontrar na matéria textil, por exemplo, pode associar-se a uma forma que se serve da borracha, do cimento, da fita adesiva e de conchas de praia para se construir, numa conjunção de materiais pouco habitual na escultura modernista ou, mesmo, contemporânea. Esta diversidade de materiais, de resto, está omnipresente: há também um monte de terra, blocos de pedra, ténis de borracha, betão, esticadores, cadeiras de plástico, mangueiras de regar, papel que parece ferro, sacos de plástico com água, sacos de plástico com cubos de chumbo. E acopla-se à diversidade de formas: há molduras que se contorsionam na parede, uma peça que atravessa o chão do primeiro piso para se pendurar do tecto do rés-do-chão, peças que parecem latas, peças que parecem baldes, e mesmo redes muito pouco tridimensionais. Há um recipiente cónico de vidro transparente belíssimo. Há coisas que sempre parecerão esculturas, outras que apenas são escultura porque o artista assim o decidiu.
Repare-se que não nomeámos os autores de cada um destes trabalhos. Não era isso que interessava, já que toda a exposição é o resultado da contínua troca de olhares, pensamentos, estilos e marcas que nos habituámos a isolar em cada exposição de galeria, e que encontramos aqui numa babel produtiva, apenas possível porque, no espaço contíguo àquele em que cada um trabalha, há alguém que compreende e dialoga, fazendo com aquilo que cada um acabou de fazer. Esta é a condição da criação artística, sempre e apenas possível na presença de um outrém que a interroga.