No tabuleiro de Kim Jong-un a China parece valer cada vez menos

A amizade entre a China e a Coreia do Norte já conheceu dias melhores. Mas as atenções continuam viradas para Pequim, quando se trata de conter as ambições nucleares do regime de Pyongyang.

Foto
Kim Jong-un é um líder cada vez mais imprevisível KCNA/ REUTERS

No dia de Ano Novo, Kim Jong-un fez o seu habitual discurso anual, usando os óculos de massa preta e hastes grossas que o tornam ainda mais parecido com o avô e fundador da nação, Kim Il-sung. Quem procurasse nas suas palavras os indícios de que estaria a ser preparado um ensaio nuclear dificilmente os encontraria. É verdade que o líder norte-coreano declarou que o país estava pronto para a guerra, caso fosse provocado por “invasores” estrangeiros e “provocadores”. “Se nos tocarem ainda que levemente, não seremos piedosos…”, avisou. Mas nada disse sobre armas atómicas ou mísseis balísticos, ao contrário do que acontecera poucas semanas antes. A interpretação feita no dia 1 de Janeiro pela agência Associated Press era a de que o discurso procurou evitar referências que iriam irritar a China, o seu mais poderoso parceiro, e destinava-se sobretudo a dourar a imagem do líder junto da elite da Coreia do Norte.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

No dia de Ano Novo, Kim Jong-un fez o seu habitual discurso anual, usando os óculos de massa preta e hastes grossas que o tornam ainda mais parecido com o avô e fundador da nação, Kim Il-sung. Quem procurasse nas suas palavras os indícios de que estaria a ser preparado um ensaio nuclear dificilmente os encontraria. É verdade que o líder norte-coreano declarou que o país estava pronto para a guerra, caso fosse provocado por “invasores” estrangeiros e “provocadores”. “Se nos tocarem ainda que levemente, não seremos piedosos…”, avisou. Mas nada disse sobre armas atómicas ou mísseis balísticos, ao contrário do que acontecera poucas semanas antes. A interpretação feita no dia 1 de Janeiro pela agência Associated Press era a de que o discurso procurou evitar referências que iriam irritar a China, o seu mais poderoso parceiro, e destinava-se sobretudo a dourar a imagem do líder junto da elite da Coreia do Norte.

Foi com um tom solene que esta quarta-feira a televisão estatal anunciou a detonação “muito bem sucedida” de uma bomba de hidrogénio. A notícia gerou reacções firmes em vários pontos do mundo – para além de cepticismo por parte de vários especialistas – e terá deixado o Governo chinês particularmente inquieto – até porque não recebeu qualquer aviso prévio de que este ensaio ia acontecer. Chineses que habitam perto da fronteira com o país vizinho, em zonas como Jilin, onde se sentiu o abalo sísmico provocado pelo ensaio, foram transferidos para outras áreas, avançou a televisão chinesa.

Das várias interpretações que se podem agora fazer é seguro dizer que a influência de Pequim junto da Coreia do Norte, um dos países mais isolados do mundo, está enfraquecida.

A porta-voz do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros, Hua Chunying, manifestou a “firme oposição” ao ensaio e exortou Pyongyang “a retomar o seu compromisso de desnuclearização e abster-se de todas as acções que possam agravar a situação”, cita a AFP. Para além disso, o embaixador norte-coreano em Pequim foi convocado para ouvir um “protesto solene”.

O Governo chinês tem sido dos poucos aliados com que a Coreia do Norte pode contar: é o seu principal parceiro comercial, fornecedor de petróleo e gás e de metade da assistência estrangeira que recebe. Mas os últimos anos foram difíceis para as relações entre ambos, de tal forma que, até agora, Kim não se encontrou com o Presidente chinês, Xi Jinping, que tomou posse em 2013 – e que num gesto bastante simbólico visitou a Coreia do Sul, arqui-inimigo do Norte, em 2014.

O clima seria brevemente desanuviado em Outubro passado, quando o Governo chinês enviou um alto representante a uma parada militar em Pyongyang com uma missiva dirigida a Kim apresentando “os melhores cumprimentos” de Xi. Mas dois dias depois, a Coreia do Norte estava a declarar que tinha desenvolvido uma bomba de hidrogénio. A reacção da China foi imediatamente visível: uma girl's band norte-coreana, a Moranbong Band, que se preparava para actuar em Pequim, foi obrigada a voltar para casa horas antes do concerto começar.

As raparigas da Moranbong Band foram directamente escolhidas pelo próprio Kim Jong-un para fazer frente às populares bandas de K-pop do Sul. Com as suas minissaias e saltos altos, bateria e guitarras eléctricas, distinguem-se radicalmente dos habituais instrumentos (muito conservadores) de propaganda do regime. Mas em vez de subirem ao palco, para um concerto organizado só para convidados, as raparigas, vestidas com casacos e chapéus militares, apanharam o avião da Air Koryo de volta a casa.

Há um ano, num tom impaciente, o general chinês na reforma Wang Hongguang escrevia no Global Times: “Se a Coreia do Norte tem de se afundar, nem a China a salvará.” O jornal Le Monde, que esta quarta-feira recordou essa citação, refere ainda que “as extravagâncias do terceiro elemento da dinastia Kim são vistas como um fardo, numa altura em que o desenvolvimento das ambições estratégicas de Pequim, nomeadamente no mar da China, provocam fricções com os seus vizinhos asiáticos. E adianta que, apesar de a China tentar aplicar reformas económicas na Coreia do Norte seguindo o modelo do seu próprio processo, “Pyongyang tem-nas recebido como um desvio. O regime de Pyongyang, mais nacionalista do que socialista, desconfia da influência chinesa na sua economia”.

A confirmar-se que o regime norte-coreano conseguiu detonar a bomba de hidrogénio, não é de excluir que os países da região – em particular, o Japão e a Coreia do Sul – procurem aumentar também as suas capacidades militares, com ajuda dos Estados Unidos, algo que está longe de ser bem recebido por Pequim. “A China será muito sensível quanto a movimentos do Japão ou da Coreia do Sul que visem melhorar os seus mísseis de defesa”, comentou à Reuters Zhang Baohui, especialista em segurança nuclear da Lingnan University, em Hong Kong. “A Coreia do Norte apresenta [o teste] como uma questão de Estado, mas os estrategos chineses vêem-no como uma jogada contra a China para limitar o seu poder de dissuasão nuclear.”

É por isso que, para Xuan Dongri, director do Centro de Estudos do Nordeste Asiático da Universidade de Yanbian, no Nordeste chinês, o ensaio desta quarta-feira “pretendia enviar uma mensagem forte à China. A Coreia do Norte quer mais ajuda da China”, cita o Washington Post.

Há anos que o programa de armas nucleares da Coreia do Norte é usado para legitimar internamente o regime – já era assim quando Kim Jong-il, pai do actual líder, estava no poder. As conversações a seis (duas Coreias, EUA, Japão, Rússia e China) para pôr um fim ao programa falharam em 2009, com algumas acusações lançadas a Pequim de que não tinha exercido toda a sua influência junto de Pyongyang. Agora, Hua, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, voltou a referi-las como sendo “a única forma eficaz e prática de resolver o problema da Coreia do Norte”.

Resta saber o que será pior na opinião de Xi Jinping: ter uma imprevisível potência nuclear ao seu lado, ou apanhar com as ondas de choque de um colapso do regime de Pyongyang.