Selma Uamusse já não é menina de coro

Nos Wraygunn estava ao fundo. Agora aproxima-se – finalmente – do destaque que a sua voz merece. O ano começa com Ruínas, musical em cena no São Luiz que há-de levá-la a um bordel no Congo; a seguir, um filme de Bruno de Almeida leva-a ao Cabaret Maxime. 2016 vai ser dela.

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No centro do palco há uma rapariga abraçada a si mesma, quase que a tentar desaparecer nos seus próprios braços, enquanto a patroa, a dona do estabelecimento, a avalia. Não está interessada na rapariga: foi violada, usaram nela uma baioneta. Por descargo de consciência, pergunta-lhe se sabe cantar. O irmão da rapariga, que considera que entregá-la a um bordel é o melhor que lhe pode acontecer, pega nela por um braço e diz-lhe: “Canta”. A rapariga canta, convencendo a patroa a deixá-la ficar ali.

Isto é apenas um pedacinho de Ruínas, o musical de Lynn Nottage que se estreia quarta-feira, dia 6, no São Luiz, em Lisboa, com encenação de António Pires. “Um texto muito duro”, passado “no Congo, na década de 1970”, que “retrata a vida das mulheres durante a guerra”, a partir de relatos verídicos. As mulheres “são violadas, mantidas como reféns e, para sobreviver, juntam-se num bordel”, diz Selma Uamusse. É ela a rapariga violada com uma baioneta. A rapariga que canta.

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No centro do palco há uma rapariga abraçada a si mesma, quase que a tentar desaparecer nos seus próprios braços, enquanto a patroa, a dona do estabelecimento, a avalia. Não está interessada na rapariga: foi violada, usaram nela uma baioneta. Por descargo de consciência, pergunta-lhe se sabe cantar. O irmão da rapariga, que considera que entregá-la a um bordel é o melhor que lhe pode acontecer, pega nela por um braço e diz-lhe: “Canta”. A rapariga canta, convencendo a patroa a deixá-la ficar ali.

Isto é apenas um pedacinho de Ruínas, o musical de Lynn Nottage que se estreia quarta-feira, dia 6, no São Luiz, em Lisboa, com encenação de António Pires. “Um texto muito duro”, passado “no Congo, na década de 1970”, que “retrata a vida das mulheres durante a guerra”, a partir de relatos verídicos. As mulheres “são violadas, mantidas como reféns e, para sobreviver, juntam-se num bordel”, diz Selma Uamusse. É ela a rapariga violada com uma baioneta. A rapariga que canta.

É a primeira vez que representa “a sério”, embora no passado tenha feito duas peças, O Fantasma do Chico Morto, com a Barraca, e Convite para Dançar, quando ainda estudava no Técnico. Em breve também chegará às salas a sua estreia em cinema, Cabaret Maxime, o novo filme de Bruno de Almeida. “O Bruno estava sempre a dizer-me que tínhamos de trabalhar em conjunto. Um dia ligou-me e disse-me que tinha escrito um papel para mim. E fiz o papel de Selma." Apesar destas experiências, ainda não se sente à vontade. “Não tem nada a ver com o lado performativo de cantar. Nos concertos, ajo consoante o que o público me está a dar. Mas a representação implica outro tipo de concentração que me é mais difícil”, explica. “Nunca me irei considerar actriz."

Valha a verdade, o seu nome tem até agora estado ligado a um palco, mas a um outro tipo de palco: aquele em que decorre um concerto. Talvez não tenham decorado o nome dela, mas certamente já a ouviram (e em breve, irão decorá-lo). Selma Uamusse era uma das duas meninas do coro nos Wraygunn. Fez parte da primeira banda do clube Mercado (em Lisboa). Assinou tributos a Nina Simone. Passou pelo Festival Músicas do Mundo, em Sines, com o seu projecto a solo de música moçambicana, deixando de boca aberta quem não a conhecia. Participou na recente homenagem a António Variações criada por Samuel Úria, e é a voz do mais recente disco de Rodrigo Leão. 2016, escrevam isto, será o ano dela.

A chamada
Pode dizer-se que Selma Uamusse tem crescido em público e que tem sido um lento crescimento – o talento sempre lá esteve, mas ela não optou por dar passos maiores do que as pernas, antes pelo contrário: cada passo vai sendo mais seguro do que o anterior. E faz sentido que assim seja, porque tudo isto podia não ter acontecido.

Houve a sorte de ser descoberta aos 18 anos, quando “estava a cantar entre amigos” e o maestro Carlos Ançã a ouviu e “desafiou a fazer parte de um grupo de gospel”. Ela aceitou, e o gospel tornou-se fundamental na sua vida. Quanto mais não seja porque teve “uma descoberta espiritual”, tornando-se, mais tarde, protestante evangélica. Os pais, moçambicanos (tal como ela), eram comunistas e ateus. Acreditavam que devia ser Selma a escolher se a religião teria ou não presença na sua vida. Tinha 14 anos quando começou a “sentir um despertar”. Passou a ir à igreja, foi baptizada.

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NUNO FERREIRA SANTOS
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Nuno Ferreira Santos

Cinco anos depois de chegar ao gospel, entrou no Eclesiastes. Mais correctamente, entrou em Ecclesiastes 1.11, o disco dos Wraygunn – e nos próprios Wraygunn: “Como o disco era uma tentativa de cruzar a música de Deus e a música do diabo, eles procuraram vozes em coros e encontraram o meu. Fomos seis aos concertos de apresentação, depois ficámos três. Houve muita empatia e um dia recebi um telefonema do baterista a convidar-me para fazer parte da banda."

A partir daí, Selma ficou mais exposta mediaticamente e choveram “os convites para fazer outras coisas”. Mesmo assim, demoraria quatro anos a abandonar a engenharia e a dedicar-se à música. É um percurso que começa e que ela imagina que acabe com o gospel. Um percurso que ela nunca imaginou enquanto crescia.

Natural de Maputo, Selma Uamusse veio para Portugal aos seis anos. “O meu pai estava na Alemanha. A minha mãe veio fazer um mestrado para cá e ele também se transferiu para Lisboa. Regressámos a Moçambique em 1997, mas eu pedi para ficar em Portugal e acabar o secundário. Fiz a universidade, e a seguir casei-me." Por norma, sonha-se com as artes quando se está a crescer. No caso de Selma foi o oposto. Em miúda nunca assumiu “que tivesse um dom extraordinário que valesse a pena explorar”, embora, claramente o tenha: uma voz afinadíssima, mas repleta de emoção. Sabemos isto desde os Wraygunn. “Tive um avô materno que sempre cantou e sempre dançou, uma bisavó que também cantava”, recorda, mas as memórias acabam aqui. “A música sempre me foi muito familiar e muito natural, mas sempre pensei que iria ser engenheira e que voltaria para Moçambique para fazer desenvolvimento urbano."

Seguiu esse percurso até aos 28 anos, quando foi mãe. “Foi aí que senti o apelo da música." Já cantava, mas nunca pensou dedicar-se exclusivamente a isso. “Para mim, a engenharia e a música eram dois mundos separados. A maternidade deu-me a evidência dessa chamada."

Um pouco de tudo
Primeiro passou na direcção de uma carreira a sério: estudar música no Hot Club. Depois Selma Uamusse criou uma banda de soul, os Soul Divers, grupo residente do Mercado –  um clube que já desapareceu mas na altura foi palco de alguns belos concertos, como o segundo dos Buraka Som Sistema. Selma cantava Erykah Badu e lembra-se de Kalaf lhe dizer que ia fazer uma banda de kuduro progressivo. Também recorda com particular afeição um concerto que Ed Motta deu lá.

Mais tarde, atirou-se ao jazz e criou um ensemble que lhe permitiu cantar Billie Holiday mas também coisas mais modernas, próximas do acid-jazz. Um presente colocou-a perto do que é hoje: “Ofereceram-me uma caixa da Nina Simone e apreciei tanto que fiz um concerto só sobre ela. Correu muito bem. De 2009 a 2013 andei a fazer esse tributo."

Ajudou imenso a espalhar o nome de Selma. Uma coisa é fazer coros engraçados nos Wraygunn; outra é cantar Nina Simone. Uma vez todos enganam; para enganar duas vezes já é preciso talento. A seu lado no palco estavam amigos da música, como o Wraygunn Paulo Furtado (também The Legendary Tigerman) e Marta Ren, que é a sua “irmã de coração”, a sua “soul sista” (escassos anos neste mundo de dar à voz e os que lhe são mais próximos já são os músicos).

Todo este trajecto serve para demonstrar que Selma não é rapariga de uma só música. Quando chegou aos Wraygunn, uma das razões da simpatia mútua foi a sua facilidade em lidar com os diversos géneros que faziam parte do universo da banda. Talvez sejam resquícios do seu crescimento: “Os meus pais deram-me a conhecer coisas tão variadas como a chanson, o Bob Marley ou os Pink Floyd. Não passei a infância a ouvir música africana – embora também a tivesse ouvido. Numa fase andei pelo metal e pelo punk. Um namorado deu-me a conhecer hip-hop e soul. Não sou especialista em nada, mas conheço um pouco de tudo."

E assim Selma Uamusse chegou ao projecto que dentro em breve a tornará um nome maior: uma reescrita da música tradicional moçambicana. Mais uma vez por acaso. “Fiz um concerto dedicado à Miriam Makeba no B.Leza [em Lisboa] e estava lá o Alcides Nascimento, que é filho do Bana. Desafiou-me a explorar esse lado moçambicano. Sempre gostei de alguns instrumentos, como a timbila e vários tipos de mbiras."

O disco já podia estar nas lojas. Houve uma fase em que Selma duvidou que alguma vez estivesse pronto, mas agora prefere deixar ir e ver o que acontece. “Já tive o disco gravado, mas troquei de produtor e na estrada as canções mudaram. Comecei em Moçambique, continuei cá e ainda vou gravar outra vez em Portugal." Se tudo correr bem, sairá no primeiro semestre do próximo ano. Certo é que, escrevam isto, 2016 será o ano em que ela encontrará a sua voz e o seu país, e em que os oferecerá ao mundo. O ano em que deixará de ser menina de coro.