Em França já se fala em tornar apátridas todos os condenados por terrorismo
Sugestão do líder da bancada socialista pretendia responder às críticas ao projecto de retirar a nacionalidade francesa a cidadãos com dupla nacionalidade acusados de crimes contra a Nação, mas acabou por acrescentar mais achas à fogueira
Vários legisladores franceses que apoiam uma polémica proposta de revisão constitucional para permitir a retirada da nacionalidade a quem for condenado por crimes de terrorismo querem ir ainda mais longe do que o Governo do Presidente François Hollande, e aplicar essa punição não apenas aos detentores de dois passaportes mas a todos os cidadãos da república – ou seja, também àqueles que não possuem outra nacionalidade para além da francesa.
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Vários legisladores franceses que apoiam uma polémica proposta de revisão constitucional para permitir a retirada da nacionalidade a quem for condenado por crimes de terrorismo querem ir ainda mais longe do que o Governo do Presidente François Hollande, e aplicar essa punição não apenas aos detentores de dois passaportes mas a todos os cidadãos da república – ou seja, também àqueles que não possuem outra nacionalidade para além da francesa.
Acrescentando uma nova camada de controvérsia ao já inflamado debate público, vários membros do Governo consideraram, esta segunda-feira, que algumas das sugestões apresentadas por deputados e dirigentes políticos nos últimos dias, no sentido de alargar a possibilidade da revogação da nacionalidade por terrorismo a todos os franceses, constituem um “novo elemento” que é bem-vindo no âmbito da discussão do assunto.
“O Presidente da República fez saber qual é a sua posição e abriu o debate. Não deixaremos de olhar para as diferentes posições para perceber o que pode ser posto em cima da mesa: a preocupação do Presidente e do Governo é a de reunir o mais amplo consenso possível sobre uma questão que, acima de tudo, diz respeito à protecção dos franceses, pelo que deve ultrapassar as divisões habituais”, esclareceu o ministro da Agricultura e porta-voz do Governo, Stéphane Le Foll, no fim da reunião de conselho de ministros.
O debate parlamentar do projecto de revisão constitucional “para a protecção da nação” apresentado pelo Governo no fim de Dezembro arranca no próximo dia 3 de Fevereiro, e a esta distância não é claro que o Governo consiga reunir os votos dos três quintos de membros da Assembleia Nacional e do Senado que são obrigatórios para aprovar mudanças no texto fundamental. Apesar de a lei ser apoiada pelas bancadas da direita – Os Republicanos e a Frente Nacional –, pelo menos 60 deputados socialistas já anunciaram a intenção de votar contra, ao lado dos partidos de esquerda, que montaram uma oposição feroz ao projecto governamental. No seio do executivo, também não existe consenso, com vários ministros a assumirem publicamente a sua discordância.
Para ultrapassar as reservas de muitos legisladores no apoio ao projecto do Governo, o líder da bancada socialista na Assembleia Nacional, Bruno Le Roux, equacionou a apresentação de emendas em resposta aos críticos que assinalaram como consequências nefastas da proposta uma alegada quebra da coesão social com uma divisão (e discriminação) dos franceses em cidadãos de primeira e de segunda, em função da sua origem. No sentido de evitar situações de desigualdade perante a lei, Le Roux sugeriu que o âmbito da medida seja alargado para “permitir que seja retirada a nacionalidade francesa a todos aqueles que levantam armas contra o Estado e contra quem vive no nosso país, independentemente de terem outra nacionalidade ou não”.
“Estamos a falar de mais um elemento no debate”, desdramatizou o secretário de Estado encarregue das relações com o parlamento, Jean-Marie Le Guen, sem deixar de reconhecer, porém, a particular complexidade da discussão, do ponto de vista jurídico e também de relações internacionais. Isto porque, apesar de a proposta original do Presidente apontar apenas a pessoas com dupla nacionalidade, não faz nenhuma distinção entre aquelas que nasceram no estrangeiro e aquelas que nasceram em França – e estão salvaguardadas pelos chamados direitos de sangue e direito de solo, como era o caso de alguns dos terroristas envolvidos nos atentados de 13 de Novembro em Paris.
O projecto de Hollande já rompe com os critérios da legislação actual: o Código Civil da França diz claramente, no seu artigo 25, que a nacionalidade só pode ser revogada quando foi adquirida, isto é, nos casos em que a república acolheu indivíduos que não tinham direito automático a ser considerados franceses e solicitaram a naturalização (por exemplo, imigrantes com mais de cinco anos de residência ou estrangeiros casados com cidadãos franceses há mais de quatro anos). O mesmo artigo prevê a impossibilidade da destituição da nacionalidade “se dela resultar um indivíduo apátrida”.
Como assinalam vários especialistas, a ideia de generalizar a proposta governamental para incluir todos os cidadãos franceses não só colide com as normas jurídicas do país como viola resoluções e tratados internacionais subscritos pela França, nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que estabelece que no artigo 15 que “todo o indivíduo tem direito a uma nacionalidade”, ou uma convenção das Nações Unidas de 1961 que impede os Estados signatários de “privar a nacionalidade a indivíduos cuja aplicação dessa medida torne apátridas”.