A esperança espanhola
E vão três! Durante o ano que acabou, os três países da Europa do Sul que foram sujeitos a políticas radicais de austeridade neoliberal, em geral desenhadas entre Bruxelas, Frankfurt e Nova Iorque, viram os seus governos serem largamente derrotados pelo voto popular. Em janeiro, na Grécia; em outubro, em Portugal; há duas semanas atrás, em Espanha. Em todos os casos confirma-se uma forte viragem à esquerda (em Espanha, de 40,4% dos votos para 50,4%, incluídas as esquerdas catalã, basca, galega e valenciana), uma derrota inapelável da direita que governava (o PP, que, baixando de 44,6% para 28,7% perdeu mais de 1/3 dos votos), acompanhada de um aumento da participação eleitoral e de um fenómeno geral de crise dos partidos que se têm alternado no poder (PP e PSOE atingiram, em Espanha, um mínimo histórico inferior a 50%).
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E vão três! Durante o ano que acabou, os três países da Europa do Sul que foram sujeitos a políticas radicais de austeridade neoliberal, em geral desenhadas entre Bruxelas, Frankfurt e Nova Iorque, viram os seus governos serem largamente derrotados pelo voto popular. Em janeiro, na Grécia; em outubro, em Portugal; há duas semanas atrás, em Espanha. Em todos os casos confirma-se uma forte viragem à esquerda (em Espanha, de 40,4% dos votos para 50,4%, incluídas as esquerdas catalã, basca, galega e valenciana), uma derrota inapelável da direita que governava (o PP, que, baixando de 44,6% para 28,7% perdeu mais de 1/3 dos votos), acompanhada de um aumento da participação eleitoral e de um fenómeno geral de crise dos partidos que se têm alternado no poder (PP e PSOE atingiram, em Espanha, um mínimo histórico inferior a 50%).
A austeridade neoliberal imposta à Espanha ao longo dos últimos cinco anos (o primeiro dos quais, como em Portugal, a cargo do governo socialista de Zapatero) sustentou-se em três tipos de instrumentos, cujo peso relativo é diferente nos casos português e grego. Em comum aos três casos, uma aposta demasiado óbvia em fazer pagar aos mais pobres e aos assalariados os custos de uma globalização feita para encobrir o aventureirismo financeiro, espécie de estádio final da desfaçatez do capitalismo, e para acionar o mais potente dos aspiradores que têm promovido, desde há 40 anos, uma concentração sem paralelo da riqueza. No caso espanhol, o governo de Rajoy (um desses dirigentes da direita, tão incaracterístico quanto Passos e Samaras, a quem nestes países se recorreu para desempenhar este papel) sujeitou a Espanha a um programa duríssimo de cortes nos programas sociais e nos salários das administrações públicas (quer a gerida pelo governo central, quer as que dependem das Comunidades Autónomas) e de precarização generalizada da contratação, que fez do país um caso excecional à escala europeia e de desvalorização do valor económico e simbólico do trabalho.
O segundo dos instrumentos é uma consequência da intensidade do primeiro: nenhum outro governo europeu (com a eventual exceção do húngaro) respondeu ao protesto social com semelhante dose de violência policial. Segundo um perito do Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, em Espanha “há um sistema torturante que requer impunidade” e “alguém que autorize” a tortura e o maltrato policial, “alguém que conceba, alguém que encubra e alguém que amnistiea”, num quadro geral em que, segundo este organismo independente, “cada corporação policial possui unidades de elite formadas para este fim” (Público.es, 1.2.2015). O paradoxo não podia ser mais evidente – e mais revelador: ao mesmo tempo que a ETA cessava 43 anos de ações armadas em 2011, dez meses antes do regresso do PP ao poder, a violência policial não deixou de se agravar desde então e o governo adotou uma legislação repressiva (a chamada Lei Mordaça) sem precedentes.
Complemento automático do primeiro daqueles instrumentos foi a centralização política e administrativa. Como sempre sucede em ciclos de controlo da despesa pública, o poder executivo, por mais liberal que se diga, invade competências dos organismos autónomos (por exemplo, as universidades), das regiões e dos municípios, retira-lhes recursos, ataca a sua autonomia. No caso espanhol, isto não podia deixar de provocar uma crise na consistência do chamado Estado das Autonomias que, até havia poucos anos, havia mantido a maioria dos catalães longe do independentismo. Uma das estratégias centrais da direita é a de procurar articular um novo nacionalismo espanhol para compensar a crescente ilegitimidade da sua política social. Exatamente como nos últimos anos de Aznar à frente do governo (2000-04), que teve a sua manifestação mais patética no boicote ao cava (o espumante) catalão, uma retórica populista anticatalã foi sendo imposta através dos media e do discurso político, que procura calar mais de um século de tensões com inflamadas proclamações sobre a unidade de Espanha. As direitas espanholas, acompanhadas de uma parte muito importante de setores sociais que, especialmente no Sul de Espanha, confiam o seu voto aos socialistas, têm conseguido evitar rediscutir um modelo de Estado que, 40 anos depois da transição democrática, continua a deixar insatisfeitos a maioria de catalães, bascos ou navarros, e uma parte importante dos galegos. De pouco serve fingir que o problema não existe, e descrever o independentismo/soberanismo catalão, que tem exigido o direito a decidir sobre o futuro da Catalunha de forma especialmente intensa desde 2012, como se de um capricho de ricos (os catalães) contra pobres (andaluzes, extremenhos, …) se tratasse, ou, pior ainda, como se não passasse simplesmente de uma estratégia desesperada de um líder (Artur Mas) sem saída. As eleições catalãs de setembro passado deram maioria parlamentar aos partidários da independência; nas eleições espanholas que acabam de se realizar, cerca de 60% dos catalães votaram em candidaturas que reivindicam o direito a realizar um referendo que a Constituição espanhola (e a direita e o PSOE) impede, dando o primeiro lugar a uma aliança de vários partidos de esquerda com o Podemos, a qual, sintomaticamente, foi também a mais votada no País Basco e a segunda na Galiza, em ambos os casos superando amplamente o PSOE.
Reduzido à irrelevância política o novo fenómeno nacionalista espanhol dos Ciudadanos, tornada impossível uma maioria de direita entre estes e o PP, aos socialistas espanhóis abre-se agora a possibilidade de seguir o modelo português, isto é, o de uma negociação à esquerda que permita dar passos decisivos na resolução, quer da questão social (revogar a legislação neoliberal toda, revalorizar o trabalho, recompensar os milhões de espanhóis que pagaram o preço da austeridade), quer da questão nacional, abrindo um processo de negociação com a Catalunha que passa forçosamente pela revisão da Constituição. O problema para os socialistas é que, como eles gostariam, não lhes basta virar à esquerda na política social para conseguir uma maioria no Parlamento: têm mesmo de obter o apoio (ou, pelo menos, a tolerância) dos independentistas catalães (com 17 dos 350 deputados), o que os levaria a quebrar alguns dos tabus estruturais da política espanhola e discutir um novo modelo de Estado. Ao contrário do que com grande ligeireza e patetismo se tem descrito (quer em Espanha, quer por cá, por exemplo), uma tal evolução nada tem a ver com os espantalhos do desmantelamento da Espanha ou da sua balcanização. Tem a ver, isso sim, com uma esperança muito intensa na mudança, na vontade de resolver problemas que parecem bloqueados. De, uma e outra vez, negar que não haja alternativas.