O espírito do leão
Através de uma narrativa histórica sobre um rei branco no Vale do Zambeze, Khosa retrata um tempo formador da moderna identidade moçambicana
Em Choriro, o escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa (n. 1957) — nome tsonga de Francisco Esaú Cossa — narra a história de um rei branco no Vale do Zambeze na segunda metade do século XIX, Luís António Gregódio, a quem todos chamavam Nhabezi, o curandeiro, “por mostrar grandes habilidades no trato de ervas e mezinhas”. O português Gregódio fora um antigo caçador profissional de elefantes, “um branco que se ambientou na língua e nos costumes”, e que se tornou dono e senhor de vastas terras na confluência dos rios Lângua e Zambeze numa época que ficou conhecida pelos historiadores como “período mercantil” — quando as explorações portuguesas começaram a espalhar-se pelo Sul de África. Gregódio conseguiu juntar em seu redor uma população de indivíduos de várias etnias da região e escravos fugidos dos prazos (terras da Coroa portuguesa que eram exploradas pelos prazeiros, colonos brancos e também indianos), e foi-lhe ofertada a filha de um rei local, que se tornou a sua primeira mulher. Foi celebrando várias alianças matrimoniais com os reis vizinhos e, com o tempo, as populações passaram a prestar-lhe tributo de rei, o rei Nhabezi.
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Em Choriro, o escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa (n. 1957) — nome tsonga de Francisco Esaú Cossa — narra a história de um rei branco no Vale do Zambeze na segunda metade do século XIX, Luís António Gregódio, a quem todos chamavam Nhabezi, o curandeiro, “por mostrar grandes habilidades no trato de ervas e mezinhas”. O português Gregódio fora um antigo caçador profissional de elefantes, “um branco que se ambientou na língua e nos costumes”, e que se tornou dono e senhor de vastas terras na confluência dos rios Lângua e Zambeze numa época que ficou conhecida pelos historiadores como “período mercantil” — quando as explorações portuguesas começaram a espalhar-se pelo Sul de África. Gregódio conseguiu juntar em seu redor uma população de indivíduos de várias etnias da região e escravos fugidos dos prazos (terras da Coroa portuguesa que eram exploradas pelos prazeiros, colonos brancos e também indianos), e foi-lhe ofertada a filha de um rei local, que se tornou a sua primeira mulher. Foi celebrando várias alianças matrimoniais com os reis vizinhos e, com o tempo, as populações passaram a prestar-lhe tributo de rei, o rei Nhabezi.
Partindo de uma personagem histórica, documentada em arquivo, Ba Ka Khosa retrata de maneira notável (quer do ponto de vista histórico quer etnográfico) o conflito entre a identidade pré-colonial e a da época colonial, ou seja um tempo formador da identidade moçambicana moderna. Não é a primeira vez que Ungulani — que é historiador de formação — recorre à História (mas não só) para apoiar uma narrativa ficcionada. Fê-lo antes no seu romance de estreia, Ualalapi(Caminho, 1991) — considerado por muitos como um dos mais importantes romances africanos de sempre —, ao retratar, em “contos contínuos”, o declínio e a queda do império de Gaza com base na figura histórica do imperador Ngungunhane (a quem os portugueses chamaram Gungunhana). Uma “metaficção historiográfica”, disseram alguns. Então, numa escrita veloz, violenta e crua, perpassada de aforismos, Ba Ka Khosa intertextualizou fragmentos de documentação histórica com uma narrativa ficcional que parecia procurar o suporte na tradição oral, para desmitificar um herói nacional descrevendo-o como um homem cruel, violento e sanguinário. Em Choriro (palavra que, na língua local, significa choro, lamento), esse uso de materiais narrativos (embora existindo) não é posto de maneira tão evidente. Mas continua o aparente “conflito” entre a História (uma certa verdade oficializada) e a tradição oral, a escrita e a fala que perpetua, que tem a função de passar o testemunho, como se pode ver neste excerto: “A princípio a relação tendeu a azedar-se por Alfai querer registar em letra os procedimentos do fabrico da pólvora e das gogodelas, facto que irritou Thyago, pois só a ele, e poucos outros, cabia passar o testemunho.”
Sob vários aspectos, Choriro (bem como outras obras de Ba Ka Khosa) parece evocar o romance seminal da moderna literatura africana, Quando Tudo Se Desmorona, do nigeriano Chinua Achebe (Mercado das Letras, 2008): o incorporar da tradição oral africana (deixando com isso algumas histórias em aberto) numa arte com origem europeia (o romance); um olhar lançado de “dentro”, em oposição clara às narrativas feitas pelos colonos (que sempre olharam, irremediavelmente, África de “fora”); e o conflito identitário em tempos de começo de colonização. Ao contrário do referido romance do autor nigeriano, em Choriro é o homem branco, o rei Nhabezi, quem quer entrar no mundo dos negros (mesmo após a morte): “Quer acredites ou não, o meu mundo é este, Chicuacha. A minha carne desfar-se-á nestas terras, e o meu espírito, transformado em espírito de leão, rugirá por estas selvas.” Como se acreditava que acontecia com os reis negros ao morrerem. A isto Chicuacha, também ele branco e antigo padre, responde: “O teu mundo não é deste reino.”
Ungulani Ba Ka Khosa faz aqui uma espécie de elegia de um tempo, e cria uma galeria de personagens complexas, entre conselheiros, mulheres e guerreiros, que conseguem mostrar o fundo ancestral da identidade africana. Para um leitor europeu, este romance é atravessado por muitos elementos fantásticos; mas o “fantástico”, como notou Matusse, é uma “noção relativa” porque parte de um modelo racionalista ocidental, que aqui, obviamente, não tem cabimento.