As ruas de Filadélfia
Sylvester Stallone tornou-se uma das presenças mais comoventes do cinema americano: ei-lo em pleno controlo da sua persona e da sua personagem.
Há 30 anos, quando Sylvester Stallone estava no seu apogeu como action hero e, na pele de Rambo ou de Rocky, a vingar o Vietname ou a vencer a Guerra Fria em sucessivos one man shows, ninguém apostaria que estava ali um actor que ia saber envelhecer bem. Trinta anos depois, é mais do que isso, está aqui um actor que soube envelhecer muito bem, fazer das fraquezas forças, e tornar-se uma das presenças mais comoventes, mais delicadas, do actual cinema americano. Não há ninguém — nem Pacino, nem de Niro, nem mesmo Clint Eastwood ou Robert Redford — a envelhecer como ele no ecrã, num tom menor, quase alquebrado, sem “rever”, e muito menos “desfazer”, a sua imagem, mas deixando-a ser filmada, muito simplesmente, à beira do crepúsculo. É tão simples e tão bonita, na sua ausência de sublinhados e na sua frontalidade, aquela cena de Creed em que a sua personagem, informada de que está gravemente doente, aceita o destino e recusa o processo de tratamento que os médicos lhe prescrevem... Até aquele rosto semi-arruinado pelo botox e pelas plásticas faz sentido: é a imagem de um monstro bondoso, um Frankenstein surpreendido por ser aceite pelos humanos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Há 30 anos, quando Sylvester Stallone estava no seu apogeu como action hero e, na pele de Rambo ou de Rocky, a vingar o Vietname ou a vencer a Guerra Fria em sucessivos one man shows, ninguém apostaria que estava ali um actor que ia saber envelhecer bem. Trinta anos depois, é mais do que isso, está aqui um actor que soube envelhecer muito bem, fazer das fraquezas forças, e tornar-se uma das presenças mais comoventes, mais delicadas, do actual cinema americano. Não há ninguém — nem Pacino, nem de Niro, nem mesmo Clint Eastwood ou Robert Redford — a envelhecer como ele no ecrã, num tom menor, quase alquebrado, sem “rever”, e muito menos “desfazer”, a sua imagem, mas deixando-a ser filmada, muito simplesmente, à beira do crepúsculo. É tão simples e tão bonita, na sua ausência de sublinhados e na sua frontalidade, aquela cena de Creed em que a sua personagem, informada de que está gravemente doente, aceita o destino e recusa o processo de tratamento que os médicos lhe prescrevem... Até aquele rosto semi-arruinado pelo botox e pelas plásticas faz sentido: é a imagem de um monstro bondoso, um Frankenstein surpreendido por ser aceite pelos humanos.
Este regresso de Rocky Balboa é um pouco isso, uma história de aceitação. Não sendo um projecto pessoal de Stallone (ao contrário de Rocky Balboa, a sua anterior visita à personagem), e tendo Ryan Coogler como realizador e argumentista, não deixamos por isso de o sentir em pleno controlo da sua persona e da sua personagem, “actor-autor” feito figura tutelar de um filme onde o protagonista é outro: Michael B. Jordan, na pele do filho de um rival lendário de Rocky, o Apollo Creed que Carl Weathers interpretou nos filmes iniciais da série. Não é claro quem “adopta” quem, se é Creed que é “adoptado” por Rocky, se o contrário. Mas é evidentemente mais um sinal das questões de filiação, e do relacionamento com as figuras paternas, que tem cruzado bastante o cinema americano (até no Star Wars...): a motivação do Creed filho (que se chama Adonis) é razoavelmente complexa, até por ser um filho ilegítimo, e numa das primeiras cenas, perante a projecção no seu home cinema de um antigo combate do pai, Adonis mima os movimentos... do adversário. Pormenor subtil, e questão de mise en scène, que faz logo uma promessa que Ryan Coogler não trairá: Creed é a revelação de um realizador inteligente e subtil (o que ele faz com a porta do apartamento da namorada de Adonis, nas várias cenas de diálogo que ali decorrem), curiosamente bem mais entusiasmante nesta aproximação ao mainstream do que no seu filme de estreia, Fruityvale Station, uma produção independente que recompunha, num realismo seco mas indistino e sensaborão, as últimas horas de uma vítima (interpretada igualmente por Jordan) da violência discricionária da polícia americana. Esse sentido de realismo, bem “destilado”, é de resto uma das forças de Creed: a maneira como o filme faz sentir as ruas de Filadélfia, os bairros mais ou menos decrépitos, as lojinhas de bairro ou os restaurantes de fast food, sem nunca tornar nada disto um portfólio fotográfico ostensivo, é notável e faz muito pelo ambiente do filme.
Muitíssimo notável, contudo, é a forma como Coogler filma o boxe, porventura o desporto mais filmado do cinema americano e onde já é difícil inventar qualquer coisa. Mas aquele primeiro combate, dado num plano único de cinco minutos, entre a coreografia dos movimentos dos combatentes e a elegância “flutuante” da steadycam, merece palmas. O outro combate, no final, é dado de forma mais convencional, mais “montada” — mas sempre vibrante, no seu poder de síntese (são 12 assaltos...) e na multiplicação dos pontos de vista das várias personagens importantes que estão na assistência.
E portanto, mesmo sem ser um projecto de Stallone, mesmo apontando porventura a outros temas e a outras implicações, Creed é de facto um “legado” de Rocky, reencontra-o naquele “relativismo”, tão pouco na moda dos nossos dias de culto bovino dos “vencedores”, que assenta inteiramente na noção de que também na derrota, ou sobretudo na derrota, existe um pouco de glória, e que essa glória é a que vale verdadeiramente a pena enaltecer. Os planos finais, que são a mais directa citação do Rocky clássico (sem no entanto se fazerem “iconografia”), não exprimem outra coisa. Creed é uma bela surpresa a fechar este desconsolado ano de 2015.