Craig Mello: “Há muito boa ciência por fazer que não apresenta qualquer problema ético”
Uma nova revolução genética está em curso graças a poderosas técnicas de manipulação genética baseadas em mecanismos celulares como o que o norte-americano de ascendência açoriana Craig Mello descobriu há duas décadas. Será ético usar essas técnicas para alterar o ADN humano de forma hereditária?
Craig Mello, cientista da Universidade do Massachusetts (EUA), hoje com 55 anos, recebeu o Prémio Nobel da Medicina em 2006 pela descoberta de um autêntico “motor de busca” celular que, à maneira do Google, permite que as células consigam encontrar e controlar (inactivando ou removendo), dentro da gigantesca massa de material genético que possuem, qualquer sequência-alvo de “letras” do código genético. De passagem por Lisboa há uns dias, falou com o PÚBLICO dos avanços recentes e das potenciais aplicações das novas técnicas de manipulação genética desenvolvidas com base nestas maquinarias naturais das células vivas.
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Craig Mello, cientista da Universidade do Massachusetts (EUA), hoje com 55 anos, recebeu o Prémio Nobel da Medicina em 2006 pela descoberta de um autêntico “motor de busca” celular que, à maneira do Google, permite que as células consigam encontrar e controlar (inactivando ou removendo), dentro da gigantesca massa de material genético que possuem, qualquer sequência-alvo de “letras” do código genético. De passagem por Lisboa há uns dias, falou com o PÚBLICO dos avanços recentes e das potenciais aplicações das novas técnicas de manipulação genética desenvolvidas com base nestas maquinarias naturais das células vivas.
Recebeu o Nobel em 2006 pela descoberta do mecanismo de “ARN de interferência”. Pode explicar brevemente do que se trata?
As células vivem na idade da informação há milhares de milhões de anos. Portanto, precisam de ter maneira pesquisar informação e para isso desenvolveram uma série de maquinarias muito parecidas com o Google, que nós utilizamos para fazer pesquisas na Web.
As células fazem pesquisas usando curtas sequências de informação genética – neste caso, de ARN – para encontrar dentro de si a informação correspondente a essas sequências e conseguirem controlar (regular) essa informação. Ora, esse mecanismo de pesquisa só foi descoberto, no início dos anos 1990, por Andrew Fire e eu quando trabalhávamos no verme C. elegans.
O que descobrimos foi que estes organismos apresentavam uma resposta notável ao ARN em cadeia dupla. O ARN é uma forma de informação genética muito semelhante ao ADN e nós demos por ele por acaso. Vimos que, quando fornecíamos às células fragmentos de ARN em cadeia dupla, as células conseguiam integrar esse ARN dentro do seu tal “motor de busca” e programar artificialmente o seu mecanismo de pesquisa com uma sequência fornecida por nós. Ou seja, era possível utilizar esse mecanismo já existente para encontrar e regular informação escolhida por nós. E isso era espantoso.
E uma vez encontrada a informação que procuram, o que fazem com ela?
Bom, é isso que é mesmo fantástico. Há uma enzima, que chamamos uma argonauta, que é uma proteína que segura nas extremidades da sequência de ARN a pesquisar. Esse ARN é de facto um pequeno bocado de informação, equivalente a teclarmos duas ou três palavras na caixa do motor de pesquisa no nosso browser para encontrar, por exemplo, uma citação de Shakespeare tal como “ser ou não ser”.
A argonauta segura na pequena sequência de ARN e usa então a informação genética para pesquisar o alvo coincidente dentro da célula. E fá-lo de uma forma extremamente bela: as primeiras letras da sequência são apresentadas primeiro e, se coincidirem, então as letras que se seguem passam a participar na procura do alvo – e se essas também coincidirem, o “motor” pode então soltar a outra extremidade do ARN, que se vai a seguir enrolar à volta do alvo.
As duas sequências [a de pesquisa e o alvo] emparelham-se então completamente, dando origem a uma belíssima estrutura em hélice. E à medida que esta hélice se forma, empurra a sequência-alvo para dentro de um “centro catalítico” [um complexo molecular] no interior do qual a argonauta vai cortar esse alvo de ARN.
Torna-se assim possível não apenas encontrar, mas também regular, controlar, a informação encontrada. É incrível. É um pouco como aquilo que estamos a aprender a fazer – e os piratas informáticos também – com as nossas tecnologias de informação: encontrar informação, regulá-la, controlá-la graças a determinados mecanismos.
Felizmente para nós, descobrimos como usar estes motores de busca celulares, tanto para fins de investigação como para fins terapêuticos. É muito entusiasmante.
Mas é o ARN em dupla cadeia que se liga à enzima argonauta e a seguir as duas cadeias são separadas? O ARN não precisa de ser uma cadeia simples para se conseguir emparelhar com o ARN-alvo?
Uau! Acertou em cheio! É isso que mais nos surpreendeu quando vimos que o ARN em cadeia dupla era capaz de desencadear um mecanismo de “interferência” como este. Injectar ARN em cadeia dupla é como fornecer o remédio e o antídoto ao mesmo tempo – ou o veneno e o antídoto. A cadeia de ARN que guia o processo já vem emparelhada com uma cadeia de ARN complementar e, neste estado, não conseguiria emparelhar-se com ainda outro ARN.
Por isso, a primeira coisa que tem de acontecer é a separação das duas cadeias do ARN introduzido. É de facto o que acontece: quando introduzimos a argonauta com o “gatilho” de ARN em cadeia dupla, a primeira coisa que a argonauta faz é livrar-se da cadeia desnecessária de ARN. Temos assim uma argonauta cuja carga é agora apenas uma cadeia simples de ARN. A cadeia dupla é importante para o processo de carregamento do ARN na argonauta, mas antes de a pesquisa começar, ocorre efectivamente uma separação do ARN. Sem isso, seria impossível realizar a pesquisa, porque para isso é preciso um ARN em cadeia simples dentro da argonauta.
E a pesquisa procura o quê?
Procura o ARN-mensageiro [o ARN que transporta a informação do ADN do núcleo para os “centros de fabrico” de proteína na célula] correspondente. E a seguir, “silencia” esse ARN-mensageiro. Mas também é capaz de pesquisar outros tipos de ARN – e mesmo ADN. Esta técnica é uma ferramenta hoje muito usada em todo o mundo nos laboratórios de investigação. É uma maneira muito rápida de determinar experimentalmente a função de um dado gene. [Silencia-se o gene e vê-se o que acontece na célula.]
Já existem aplicações médicas deste mecanismo?
Algumas empresas estão a desenvolver terapêuticas que poderão vir a ser aprovadas em breve para uso médico. Há três ensaios clínicos a decorrer actualmente.
Para tratar que tipo de doenças?
Principalmente doenças hepáticas - doenças metabólicas do fígado, excesso de colesterol no sangue, defeitos genéticos, doenças órfãs [raras ou pouco estudadas] e ainda algumas abordagens antivirais contra a hepatite. Já há alguns candidatos terapêuticos bastante promissores.
Qual é a diferença entre esta técnica e a técnica de knockout genética, muito utilizada para produzir ratinhos com propensão para a certas doenças?
Há uma grande diferença. O knockout é irreversível. Com a nossa abordagem, estamos a desligar um gene mas não necessariamente a removê-lo. Portanto, podemos estudar os níveis intermédios da actividade desse gene.
É possível reverter o efeito silenciador do ARN de interferência?
O efeito reverte-se passado algum tempo, não é permanente – o que acho ser uma grande vantagem do ponto de vista terapêutico, uma vez que não se trata de uma terapia genética, que não estamos a mudar o doente de forma irreversível. Portanto, se houver alguma reacção adversa ao tratamento, sabemos que os doentes acabarão por recuperar.
Mas uma das coisas que ela tem de inacreditável é justamente a duração do silenciamento genético que induz. Os resultados sugerem que, quando se introduz ARN silenciador nas células para fins terapêuticos, que basta fazê-lo apenas de seis em seis meses, porque a célula parece captar muito material e é como se criasse um reservatório interno de ARN silenciador. A enzima argonauta funciona automaticamente como um mecanismo de libertação do ARN ao longo do tempo. Isso produz um efeito de muito longa duração com uma única dose. Neste aspecto, o mecanismo é muito promissor do ponto de vista terapêutico.
A abordagem antiviral faz basicamente com que os vírus feitos de ARN se autodestruam?
Sim. Sabe-se que nas plantas e nos animais, uma das funções ancestrais do mecanismo do ARN de interferência era precisamente antiviral. Por isso, não é surpreendente que possa ser usado contra os vírus. Porém, os vírus são muito espertos e constituem um alvo difícil, porque os bem adaptados têm sempre uma maneira de contornar os mecanismos de defesa das células que infectam. Portanto, obter um efeito antiviral é mais complicado do que se poderia imaginar. Mas seja como for, o ARN de interferência é uma boa ferramenta potencial.
Já foi experimentada contra o VIH?
Não parece ser uma boa estratégia contra o VIH, que é um alvo difícil de atingir.
Sabe-se que o silenciamento genético induzido num organismo por esta técnica pode ser transmitido de uma geração para a seguinte. O que é que isso quer dizer e quais são as implicações?
De facto, estamos muito interessados nisso. Sabemos que no organismo que estudamos [o C. elegans], os efeitos silenciadores podem ser transmitidos de uma geração para a seguinte. Isto permite um tipo de hereditariedade quase lamarquiana, em que um traço adquirido pode passar para a descendência. Portanto, é um mecanismo muito poderoso. Até que ponto é que algo de semelhante também ocorre no ser humano – se é que ocorre – ainda não é claro.
O que sabemos é que existem pequenos ARN que se expressam na linha germinal humana – ou seja, nos gâmetas, os tecidos que fabricam ovócitos e espermatozóides. Mas trata-se de tipos de pequenos ARN totalmente diferentes daqueles que nós descobrimos (os nossos “gatilhos” de ARN em cadeia dupla).
É o próprio ADN que codifica esses pequenos ARN e expressa-os na linha germinal e estão associados a uma proteína argonauta – ou seja, a um motor de pesquisa – ligeiramente diferente. Todos os animais, incluindo os seres humanos, possuem argonautas que se expressam na linha germinal. E actualmente, fascina-nos a ideia de que o ARN que as células fabricam tenha um papel tão importante na programação e na manutenção da integridade da informação genética de uma geração para a seguinte.
Isso poderia ter implicações terapêuticas?
É difícil dizer. É fácil sonhar com as possibilidades, mas acho que neste momento perceber qual poderia ser o impacto terapêutico é difícil, porque aqui estamos a lidar principalmente com a linha germinal.
E isso poder ter outras implicações, nomeadamente éticas?
Pode.
Há uma nova técnica de modificação do genoma, a Crispr-Cas9, que tem estado no centro das preocupações devido às suas potenciais aplicações à manipulação genética da linha germinal. Ela tem alguma coisa a ver com o mecanismo do ARN de interferência?
De certa maneira sim, porque ambos desempenham funções paralelas. O mecanismo do ARN de interferência é um motor de busca que os animais, as plantas – e até os fungos – usam para controlar vírus e outras coisas. Pelo seu lado, as bactérias possuem um mecanismo Crispr-Cas9 ou mecanismos muito semelhantes. Mas a proteína argonauta e a proteína Cas9 não são “homólogas” entre si, isto é, não provêm de uma mesma proteína ancestral.
Todavia, são muito semelhantes: ambas são guiadas por pequenas sequências de ARN, usam a informação genética contida nesse ARN para procurar os seus alvos e, tanto num caso como no outro, esses alvos podem ser de ARN – e também de ADN. Claramente, estão a desempenhar funções do mesmo tipo, procurando informação, frequentemente de origem viral, que podem a seguir regular e, no caso dos alvos de ADN, cortar e remover.
Foi em 2012 que os cientistas conseguiram programar o sistema Crispr-Cas9 – e esse foi um grande avanço. Num ano, desenvolveram ferramentas que expressam estes motores de busca nas células humanas, que não os possuem à partida.
E o que acontece então é que o sistema Crispr-Cas9 corta o ADN nessas células precisamente na posição que nós escolhemos com base no guia de ARN que introduzimos. Portanto, ao programarmos estas coisas, podemos editar o genoma com um alto grau de precisão. É quase como se fizéssemos uma “cirurgia” ao genoma; é inacreditável.
A Crispr-Cas9 permitiria facilmente editar a linha germinal. O que pensa desta possibilidade?
Posso responder bastante depressa. Como não pode ser feito em segurança, é claro que não deve ser feito.
Mas isso pode vir a mudar um dia.
Talvez se torne seguro um dia, mas nunca irá ser muito fácil. Portanto, não vislumbro uma geração de humanos geneticamente modificados num futuro próximo. Onde acho que vai ser aplicável ao ser humano é na área das terapias baseadas em células estaminais, em pessoas com doenças genéticas. E isso será fantástico. Mas quando começamos a falar de manipular geneticamente as células germinais, há um problema: mesmo se funcionasse muito bem, qual seria a taxa de erro aceitável, quando estamos a modificar o genoma de um ser que não pode dar o seu consentimento? Para ser possível, teria de ser 100% seguro.
E nos embriões? O Reino Unido aprovou recentemente a substituição das mitocôndrias da mãe (que contêm ADN) para evitar certas doenças genéticas.
São questões muito complexas e não tenho a certeza de como devemos lidar com elas. Mas considero, mais uma vez, que a segurança do método é crucial. É seguro fazê-lo? Acho que pode ser aceitável fazer este tipo de coisas, mas como ainda não é seguro, é claramente antiético fazê-lo.
Essa é a minha resposta – e, no fundo, penso que a pergunta não faz muito sentido. As pessoas percebem logo que poderia ser muito bom, mas não é, se para obter um sucesso for preciso fazer 100 tentativas. Não podemos fazer isso no embrião humano.
E quanto à investigação pura na área da manipulação genética da linha germinal, acha que deve ser feita?
Sim, mas não em embriões humanos. E ainda menos em embriões potencialmente viáveis. O trabalho que foi feito na China [de aplicação da nova técnica a] embriões humanos recorreu a embriões totalmente inviáveis e não tenho problemas com isso, porque aqueles embriões nunca poderiam ter dado origem a um ser humano, tendo um conjunto anormal de cromossomas. Mas também não aprendemos nada com essas experiências – não era ciência de grande qualidade. Há muito boa ciência por fazer que não apresenta qualquer problema ético. É nesse ponto que estamos. É essa a realidade.
Tem mantido laços com os seus familiares portugueses? Os seus avós paternos nasceram nos EUA, mas os seus bisavós eram dos Açores. Já lá esteve?
Já estive nos Açores por duas ou três vezes. E reencontrei alguns dos meus parentes. Foi muito divertido, organizámos uma reunião de família na Maia, a aldeia dos meus antepassados, na Ilha de São Miguel. E foi curioso, porque embora a maioria dos portugueses seja de estatura bastante baixa, havia lá algumas pessoas mesmo muito altas – e acontece que eram os meus parentes mais próximos!
Fale-nos da sua infância.
Sinto que tive muita sorte, porque tanto os meus pais como os meus avós dos dois lados foram grandes exemplos para mim. Uma das coisas realmente positivas com que cresci foi a de saber que o meu pai e a minha mãe tinham sido os primeiros das suas famílias a terem a oportunidade de ir à universidade.
Os meus avós eram pessoas muito trabalhadoras, eram operários. O pai da minha mãe era um canalizador muito bem-sucedido; o meu bisavô materno era ferreiro e começou a trabalhar em criança, ficou órfão porque os pais morreram na pandemia de gripe de 1917.
Eles trabalhavam duro, mas eram muito inteligentes e tinham preocupações sociais. O meu avô Mello, do outro lado, foi obrigado a abandonar a escola. Era um atleta e estava a ter bons resultados escolares – falava-se numa bolsa de estudos para conseguir continuar os estudos como atleta.
Mas vieram os anos da Depressão e a família dele precisou de mais um ordenado – e o pai disse-lhe que já tinha idade suficiente para trabalhar. E o coitado do miúdo, que tinha uns 13 anos, começou a trabalhar numa fábrica, que por ironia do destino ficava mesmo ao lado da escola. Na pausa do almoço, o meu avô olhava lá para fora e via os seus amigos, que ainda andavam na escola, a fazer actividades de ar livre e desporto – enquanto ele estava entalado na fábrica.
A minha tia conta que, um dia, vieram-lhe lágrimas aos olhos ao olhar por aquela janela. Guardo essa imagem do meu avô Mello porque ele era mesmo uma pessoa inteligente, participava em muitas coisas. Continuou a fazer atletismo, mas também era bombeiro e conhecia toda a gente na comunidade. E sempre se interessou realmente pelas coisas que eu estudava. Ele conseguia mesmo perceber aquilo de que eu falava.
Portanto, tive exemplos à minha volta de pessoas que tinham vidas úteis mas que não tinham tido as mesmas oportunidades do que eu. Isso fez-me valorizar muito essas oportunidades – e também me tornou mais ciente de que as pessoas que recolhiam o lixo podiam ser tão inteligentes como eu. É algo que muitos académicos não apreciam: que são as circunstâncias, as oportunidades que nos conduzem ao que somos, especialmente na educação. Eu sempre tive presente todos esses fantásticos exemplos, essa ética do trabalho árduo da minha família.
Quando é que soube que ia ser cientista?
Acho que sempre me interessei por filosofia. Foi quando tinha nove anos que os astronautas andaram na Lua e eu achava a ciência fascinante. O meu pai era paleontólogo e a minha mãe era artista, portanto eu tinha o lado estético, o sentido do maravilhoso, da beleza das coisas, do quão interessante é o mundo.
Pelo menos a partir do momento em que decidi que não seria bombeiro – o meu avô guiava aqueles gigantescos camiões e eu achava isso muito giro –, soube que queria ser cientista.
Mas se me virei para a ciência, foi porque me parecia que as questões do tipo “de onde viemos” e o saber como funcionam as coisas eram as questões mais fundamentais. E sentia que podíamos aprender muito e beneficiarmos desse conhecimento.