O sono está pronto
As sonecas batem-se com crescente violência e prazer.
Acontece nas tardes do Natal, com a barriga cheia e a noite mal dormida, enquanto o filme que se vê entra num longo monólogo em voz grave, numa língua desconhecida: adormece-se.
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Acontece nas tardes do Natal, com a barriga cheia e a noite mal dormida, enquanto o filme que se vê entra num longo monólogo em voz grave, numa língua desconhecida: adormece-se.
Quando se tem fome ou sede ou outro anseio qualquer é preciso falarmos ou levantarmo-nos ou mexermo-nos. O sono não é assim. O sono satisfaz-se imediatamente. Fecha-nos os olhos e faz com que abanquemos logo ali onde estamos.
O sono é auto-suficiente e não precisa de ser anunciado. Pelo contrário, até ganha em ser roubado sub-repticiamente: quanto mais calado for o aviso, maior será o ronco.
Dormir sentado é um dos poucos consolos da velhice. Cabecear só é horrendo para quem assiste: para quem está lá dentro é como passear num barquinho à beira-mar, ora subindo, ora descendo as ondas.
Acorda-se umas dez ou vinte vezes, faz-se um ar espavorido, como quem decididamente não pediu para voltar à realidade, muito obrigado e volta-se a adormecer, hipnotizado pela vingança.
As sonecas batem-se com crescente violência e prazer. Embala-nos a ausência de angústias de passar por aborrecido, malcriado ou bêbado. A vergonha é um dos traumatismos (e um dos preços mais caros) da juventude. Passa-se e dorme-se melhor sem ela.
Quando finalmente se acorda pela última e enésima vez e se pergunta há quanto tempo é que estamos a dormir quanto mais exagerada for a resposta ("há três horas!") mais a alma se agrada e folga.
Passar pelas brasas é uma doce insolência perante a morte.