O passarinho lento
Agora está a ficar tarde. Mais uns dias e o ano vira. Para 2016 eu não peço quase nada a não ser quem sabe aqueles curtos feitiços diários: olhar para o relógio e ver sem querer as horas concordantes com os minutos, 15:15 por exemplo. Ou dar conta da vida mortal de vez em quando.
Inaugurei este ano dizendo que aprenderia tudo da experiência. Ou não disse, imaginei. Deixei que o ano começasse vagaroso e frio como quase todas as coisas começam. Pus-me na frente de um rochedo e pedi que o tempo viesse assim como a pedra, irregular, feito de sombra e luz, com uma surpresa ou outra no caminho. Bati uma fotografia de um painel tropical e declarei: agora seja dois mil e quinze o futuro pelo qual sempre esperámos, vão-se as escaras de nossas cabeças, regresse o corte de cabelo um bocado primitivo. Seja tudo de um vermelho fundamental, sagrado, mais que natural. Cuidado com os pedidos, já dizia o outro.
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Inaugurei este ano dizendo que aprenderia tudo da experiência. Ou não disse, imaginei. Deixei que o ano começasse vagaroso e frio como quase todas as coisas começam. Pus-me na frente de um rochedo e pedi que o tempo viesse assim como a pedra, irregular, feito de sombra e luz, com uma surpresa ou outra no caminho. Bati uma fotografia de um painel tropical e declarei: agora seja dois mil e quinze o futuro pelo qual sempre esperámos, vão-se as escaras de nossas cabeças, regresse o corte de cabelo um bocado primitivo. Seja tudo de um vermelho fundamental, sagrado, mais que natural. Cuidado com os pedidos, já dizia o outro.
Cristina Campo contou-nos um dia a história do profeta Elias, sobre como ele ouviu a palavra do destino. Imaginamos sempre o destino a vir feroz, numa espécie de língua de fogo que nos lambe a casa e que finalmente nos explica tudo. Costumava achar que era mesmo assim o destino, ou a revelação: um gesto claro, potente, um movimento que nos viraria ao contrário e que de repente nos espantaria em permanência. Pensava que tarde ou cedo, se estivéssemos atentos, as coisas nos seriam mostradas com vigor. Achei que o presente explodiria em nossas mãos assim que estivéssemos preparados para o receber. Mas Cristina Campo conta que com Elias foi diferente. O que o profeta ouviu, explica Campo, foi “uma pequena vozinha semelhante a um hálito, e tapou a cabeça pelo terror”. Como se um pássaro pequeno entrasse pela janela da cozinha de repente, e isso fosse afinal um grande susto. Talvez para 2015 eu tenha pedido um pássaro, ou o dom da lentidão, mas o que eu não contava era com o terror. Não achei que fossem arder tantas coisas à nossa volta, que voltássemos de novo o foco terrível para as cidades portuárias, não imaginei um vírus espalhando-se por um continente inteiro e por tantos corpos frágeis. Ou aviões, aviões caindo por todos os lados, até mesmo no deserto, loucos candidatos às presidências, polícias disparando tanto e sem pudor. A Califórnia seca e a Gronelândia derretendo.
Pedi para 2015 a novidade, e de vez em quando o fogo-fátuo visto da varanda. Devo ter pedido o mistério. O que eu não contava era com isto. Eu não contava com uma avó morta, menos ainda com o seu corpo a desfazer-se devagar na minha frente, na frente de todos os seus filhos, não contava com tempestades que derrubariam dezenas de árvores na vila durante a noite, não contava com o choro de meu pai. Eu não contava com o desaparecimento. Não contava com uma tristeza demorada, arrastada, que se refaz constantemente mas que ao mesmo tempo refaz o mundo. Irónica e estúpida tristeza. A morte, principalmente a morte da matriarca, oferece a sua descendência um novo desenho do tempo. Tenho-me demorado nas coisas, sempre de lápis na mão. Isto vai ser tudo muito devagar.
Há um poema de TS Eliot que diz que a sabedoria é apenas o conhecimento dos segredos mortos e que os homens velhos deveriam ser exploradores. Que as casas se erguem e caem num instante. Eu não contei com a queda para 2015. Não contei com a paragem de todos os corpos celestes durante alguns minutos, logo depois da expiração final de um pulmão. Não contei assim tanto com o engasgamento. Não me passou pela cabeça que tivéssemos que pensar com tanta força na renovação, nem na condição da natureza depois da viragem universal. Num instante tudo muda: ontem estávamos na praia mergulhando da pedra, amanhã estaremos velando um corpo ou uma cidade. Foi com 2015 que descobri a condição de uma magia irrepetível. Tudo o que vive, tudo o que respira, tudo o que tem cheiro e cor e timbre: é irrepetível.
Agora está a ficar tarde. Mais uns dias e o ano vira. Para 2016 eu não peço quase nada a não ser quem sabe aqueles curtos feitiços diários: olhar para o relógio e ver sem querer as horas concordantes com os minutos, 15:15 por exemplo. Ou dar conta da vida mortal de vez em quando. Fazer e refazer a mesma construção por dias a fio, mesmo pressentindo que um dia vem um sol ou um trovão e tudo se altera. O que será de nós no ano que vem eu não sei, como também não sei o que acontece depois de uma jogatana de berlinde ou depois do jantar. Sei que estou de lápis na mão, tremendo, tentando lentamente desenhar uma montanha.
O poema de Eliot diz que é no começo que está o fim, e que é no fim que está o começo. Depois de nós, depois das questões violentas, depois do amor e depois da dança celestial, tudo virá de novo. Mas vestido com outra roupa. Há sempre um fim de mundo anunciado, a verdade é essa, no verão ou no inverno, em dezembro ou março. Os imperfeitos somos nós. Mas a terra que nos sustenta os corpos não nos ultrapassa em qualidades - tudo o que vive é pó, foi pó e será pó. Então venha daí mais um universo se acabando. E pelo sim pelo não, deixemos sempre uma janela aberta. Para que se apresente mais uma vez o passarinho, este que em 2015 nos explicou o destino em lentidão.