Universidades: autonomia e responsabilidade
Mais autonomia exige mais transparência e mais responsabilização.
Referi já aqui a urgência de promover uma avaliação da aplicação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), aprovado em 2007. Porque, por princípio, a avaliação é um requisito básico da qualidade das políticas públicas. Mas também porque, no caso do RJIES, o artigo 185º estabelece a obrigatoriedade de avaliação da sua aplicação, cinco anos após a entrada em vigor. Passaram-se oito anos e essa avaliação ainda não foi realizada.
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Referi já aqui a urgência de promover uma avaliação da aplicação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), aprovado em 2007. Porque, por princípio, a avaliação é um requisito básico da qualidade das políticas públicas. Mas também porque, no caso do RJIES, o artigo 185º estabelece a obrigatoriedade de avaliação da sua aplicação, cinco anos após a entrada em vigor. Passaram-se oito anos e essa avaliação ainda não foi realizada.
1. O RJIES é uma das três medidas de política lançadas por Mariano Gago e Manuel Heitor, que, nos últimos anos, permitiram promover uma efetiva reforma no ensino superior, aprofundando decisivamente a sua autonomia e modernização.
A primeira dessas medidas foi a adequação ao Processo de Bolonha, com um conjunto de regras que induziu mudanças nas condições de mobilidade de diplomados no espaço europeu e nas condições de acesso ao ensino superior ao longo da vida, assentes agora em sistemas harmonizados de acreditação e de reconhecimento de competências (D-L 74/2006).
Depois, em 2007, foi aprovado o RJIES, que instituiu os princípios de organização do sistema de ensino superior, criou órgãos de gestão com participação externa e promoveu a diversidade organizacional e de personalidade jurídica das instituições públicas (L 62/2007). Paralelamente, foi aprovado um novo regime legal de avaliação (L 38/2007) e criada uma nova instituição independente de avaliação, a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, A3Es (D-L 369/2007), para garantir a qualidade do ensino superior através de processos de avaliação e de acreditação externas, de acordo com práticas internacionais.
Por último, foi revisto o Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU), estabelecendo-se uma maior exigência na qualificação dos docentes, designadamente através do requisito do grau de doutor desde o início da carreira, da extinção dos quadros e do aumento da representação dos lugares do topo da carreira. O ECDU estabelece agora que o conjunto de professores catedráticos e associados deve representar entre 50% e 70% do número total de professores (D-L 205/2009). O regime de exclusividade é adotado como regra e reforça-se a transparência, com a obrigatoriedade de concursos internacionais, júris maioritariamente externos à instituição e eliminação de mecanismos de transição automática entre categorias.
2. Não há dúvidas sobre os objetivos destas reformas: modernizar as instituições de ensino superior tornando-as mais autónomas, qualificadas, abertas, transparentes e responsáveis. Sobre a aplicação das reformas têm sido produzidos relatórios e estudos que, embora parciais e avulsos, permitem hoje um conhecimento razoável dos seus impactos. Sabe-se que há resultados positivos, mas há também sinais de problemas gerados, alegadamente, por práticas não conformes ao espírito da Lei e das reformas empreendidas. Refiro apenas alguns exemplos.
Em primeiro lugar, a inversão da relação entre os conselhos gerais e os reitores, apontada em vários estudos. Os conselhos gerais foram concebidos como órgãos de governo das instituições de ensino superior, com elementos externos à universidade, com competências de escolha e fiscalização do Reitor. O reforço destes poderes dos conselhos gerais era o contraponto do reforço dos poderes executivos dos reitores. Na prática, porém, em algumas universidades, o Conselho Geral está transformado numa extensão do poder do Reitor, que exerce um papel ativo na sua criação e composição, inviabilizando-se assim a autonomia institucional necessária ao equilíbrio de poderes pretendido na Lei mas, como decorre da experiência da sua aplicação, deficientemente protegido nesta.
Em segundo lugar, o uso perverso da autonomia de gestão, designadamente na aplicação do ECDU. Os mecanismos de flexibilização e alargamento da possibilidade de recrutamento e contratação, concebidos para tornarem mais competitiva a contratação de professores estrangeiros ou altamente qualificados estão a ser usados, no sentido exatamente oposto, para contratar e manter fora da carreira docente centenas de professores e investigadores doutorados. Uma imensa maioria de jovens recém-doutorados é assim colocada em regime de trabalho intensivo (lecionação de 8 e 9 disciplinas diferentes por ano), sem direito à dedicação exclusiva, sem direito ao subsídio de férias e de natal. Em alguns departamentos, metade do serviço docente é assegurado por professores contratados em situações de escandalosa precariedade e degradação salarial.
3. Importa avaliar esta política pública. Não só por uma questão de princípio mas porque os processos de degradação vividos em algumas universidades poderão colocar em causa todos os ganhos obtidos com as reformas lançadas. Mais autonomia exige mais transparência e mais responsabilização.
Ex-ministra da Educação