A odisseia não terminou, mas um dia a vida de Ahmad, Alia e Adam "será doce”
Uma família iraquiana aguarda o desfecho da burocracia holandesa para iniciar um vida nova longe da guerra.
Adam, o mais jovem de 600 requerentes de asilo que estão alojados num centro de acolhimento no Norte da Holanda, não consegue manter os olhos fechados por muito tempo: as finas paredes de contraplacado do quarto que os seus pais partilham com outras duas famílias iraquianas deixam passar todos os barulhos nocturnos.
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Adam, o mais jovem de 600 requerentes de asilo que estão alojados num centro de acolhimento no Norte da Holanda, não consegue manter os olhos fechados por muito tempo: as finas paredes de contraplacado do quarto que os seus pais partilham com outras duas famílias iraquianas deixam passar todos os barulhos nocturnos.
Com os seus dez metros quadrados, a divisão não tem tecto nem porta. E quando a luz crua dos néons se reacende às sete horas da manhã neste centro de exposições readaptado face à urgência da situação, Adam, de sete meses, é o primeiro a acordar.
“Aqui, comemos e bebemos, mas isto não é vida”, queixa-se o seu pai de 27 anos, Ahmad: “É como um pássaro numa gaiola, ele come, ele bebe, mas não é feliz”.
Esta situação está bem longe do recomeço idílico da vida com que sonharam Ahmad e a sua mulher de grandes olhos castanhos, Alia, quando precorreram em Setembro os árduos caminhos que os levaram à Europa.
Três meses depois, sentem-se presos num labirinto de lentos e impessoais procedimentos administrativos, etapa obrigatória para todos os requerentes de asilo que já se encontram na União Europeia, muitos deles albergados em alojamentos temporários em centros de exposições e pavilhões desportivos.
Às vezes, um fugaz momento de alegria dá sentido aos sacrifícios por que passaram, e ver o seu filho a crescer num país em segurança encoraja-os a serem pacientes. Adam já está a aprender a dar os primeiros passo e já pronuncia as palavras “mamã” e “papá”, animado pelos residentes deste centro de refugiados em Leeuwarden.
Sete países em sete dias
Mas a espera é difícil. “Ainda não sabemos que sorte nos vai calhar”, diz Ahmad, que tinha uma loja de roupa de marca em Bagdad. “A nossa viagem ainda não terminou.”
Ahmad, Alia e Adam fazem parte do milhão de pessoas que chegaram às costas da Europa este ano, fugindo da guerra e da miséria.
Depois de terem sobrevivido a um ataque à bomba em 2014, a família decidiu arriscar tudo neste Verão nas águas agitadas do mar Egeu. Atravessaram sete países em sete dias no auge da crise migratória, dormiram no chão, arriscaram ser presos e pagaram nove mil euros aos traficantes para dar ao seu filho uma hipótese de viver na Europa.
Escolheram a Holanda porque têm familiares a viver em Utrecht, no centro do país. Mas o estatuto de requerentes de asilo obriga-os a dormir em abrigos improvisados como o de Leeuwarden, onde vivem desde o dia 16 de Outubro. Antes já passaram por outros quatro centros.
As autoridades holandesas estão a processar um número recorde de pedidos de asilo e precisam de cinco semanas para registar os documentos de Ahmad e Alia. “Senti que a Holanda não nos quer, é como se nos estivessem a dizer para partirmos”, diz Ahmad, sentado na sua cama desfeita.
Com 54 mil requerentes de asilo registados entre Janeiro e meados de Novembro, as autoridades reconhecem estar assoberbadas.
O tempo passa lentamente no centro de acolhimento, mas o casal tenta manter-se ocupado e não baixar os braços. “Todas as manhãs, eu e as minhas amigas vestimo-nos, maquilhamo-nos e penteamo-nos juntas”, diz Alia, que ainda tem bem visíveis no rosto as cicatrizes dos ferimentos provocados pela explosão da bomba.
As famílias, com pulseiras de plástico azuis que os identificam como residentes do campo, vão uma vez por semana ao Mouni, um restaurante de kebabs no centro da cidade. “É bom comer qualquer coisa que nos faz lembrar a nossa casa”, explica Alia, mastigando com prazer o seu pão recheado de carne.
“Sem mar, sem medo”
Naquele dia juntam-se a um grupo de sírios e de iraquianos para uma excursão ao jardim zoológico, um passeio excepcional organizado por uma igreja local. As focas, instaladas numa pequena ilha no centro de um lago são a atracção principal. Os guardas levam o grupo num barco para mostrarem como é que os animais são alimentados. Os mais novos adoram mas os mais velhos estão um pouco aterrorizados, porque o barco evoca a dolorosa travessia para a Grécia.
Ainda hoje, Alia sobressalta-se de cada vez que ouve um barulho que lhe recorda a explosão da bomba. Também descreve a travessia dos Balcãs como “um pesadelo” que preferia esquecer.
Está ela mais feliz na Holanda ? “Claro que sim, é melhor, muito melhor: não há mar, não temos que fugir, não temos medo. Ninguém nos vai fazer mal ou roubar as nossas coisas.”
Ahmad foi juntar-se a um grupo de oito sírios e eritreus que estão a aprender holandês. “Daqui a cinco anos, espero ser um cidadão holandês para poder viajar pelo mundo”, explica. “Vou trabalhar, vamos ter uma casa e um carro, a vida será doce.”