As pensões e os princípios
Há pensionistas só no patamar A, ou só em B, ou mesmo, talvez, só em C; e há pensionistas “híbridos”. Infelizmente, por vezes, políticos e analistas confundem os patamares.
Procuro enunciar alguns princípios fundamentais do sistema público de pensões. Princípios que muitas análises esquecem. Não digo que tais esquecimentos sejam intencionais, mas eles acabam por enviesar gravemente parte da análise, suscitar juízos erróneos e pretextar más políticas públicas.
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Procuro enunciar alguns princípios fundamentais do sistema público de pensões. Princípios que muitas análises esquecem. Não digo que tais esquecimentos sejam intencionais, mas eles acabam por enviesar gravemente parte da análise, suscitar juízos erróneos e pretextar más políticas públicas.
As ideias vêm de outros escritos em que costumo distinguir três patamares do sistema público de pensões. O “patamar A” é o das pensões assistenciais. O “patamar B” é o das pensões contributivas. O “patamar C” é o dos excessos políticos, como liberalidades, facilitismos, eleitoralismos, ilusões da economia e da demografia, etc. Há pensionistas só em A, ou só em B, ou mesmo, talvez, só em C; e há pensionistas “híbridos” em A e B; em A e C; em B e C; em A, B e C. Infelizmente, por vezes, políticos e analistas confundem os patamares.
I) O “patamar A”, assistencial, é o domínio do Estado social, por excelência, e do puro Orçamento do Estado (OE). Decorre de opções de “política orçamental redistributiva”. Estas opções precisam de ser continuadas, tanto quanto o permita a ponderação de aspectos como i) os meios do Estado e os seus usos alternativos, ii) as regras europeias do défice e da dívida, iii) a lei da “condição de recursos” e a sua efectividade (o beneficiário é de facto necessitado).
II) O “patamar B”, contributivo, é uma espécie de contrato do “aforrador forçado”, com juros. Inclui a capitalização composta quer dos inflows na fase contributiva (contribuições laborais e patronais para pensões), quer dos outflows na fase pensionista. Daí resulta, em cada momento, um “capital contributivo” que, de verdade e de justiça, não é pertença do Estado.
III) O “patamar C”, excessivo, é fruto de opções políticas que beneficiam certos pensionistas, podendo estes figurar também nos patamares A e/ou B. Porém, as justificações do patamar C não têm nada que se pareça com as dos patamares A e B. O patamar C pode ou deve ser descontinuado por imperativo orçamental, salvaguardando, se for justo, algum gradualismo e a possibilidade de a pensão, ou parte dela, ser reclassificada e remetida do patamar C para o patamar A.
IV) Em suma, esta é a mãe de todas as regras. As pensões do patamar B, contributivo, são determinadas pelos “justos cálculos técnicos”, tomando novas esperanças de vida quando for caso disso; nessas estritas condições, elas são intocáveis pelo Estado, pessoa de bem. No caso de o pensionista do patamar B ser “híbrido” (B e A; ou B e C; ou B e A e C), a parte das pensões que ultrapasse os “justos cálculos técnicos” pode pertencer ao patamar A, assistencial, ou/e pertencer ao patamar C, excessivo, devendo num caso e noutro submeter-se às respectivas regras, conforme I e III, supra.
V) Sem confusões com a justiça social do patamar A nem com os excessos do patamar C, sem fracassos de gestão financeira do “capital contributivo” nem desvios deste capital para outros fins, e com pressupostos de cálculo relativamente normais, prova-se que o patamar B é endogenamente solvente e esta solvência é conjugável com um razoável rácio de substituição “1ª pensão/último salário”.
VI) Se o Estado escolher associar o chamado “regime de repartição” ao patamar B e ao seu “regime contributivo”, como de facto há muito escolheu, se correlativamente o Estado não criar reservas técnicas bastantes, como de facto não criou, longe disso, então isso será, foi e é responsabilidade do Estado. A alegada solidariedade entre gerações, como razão de ser do “regime de repartição”, pode ser vista a posteriori como uma falácia histórica assente em opções políticas que, sendo respeitáveis, deveriam ter sido servidas pelo OE, à época, mas em vez disso foram-no por recurso ao “capital contributivo” do patamar B, exaurindo-o consecutivamente.
VII) O Estado legislou e, coberto pela lei do “regime de repartição”, apropriou-se e usou um capital que não era verdadeiramente seu. No fundo, o Estado é sujeito passivo de uma espécie de “dívida pública não convencional”, nos estritos limites dos referidos “justos cálculos técnicos”. A República é devedora perante os titulares do patamar B, os quais, por serem pessoas singulares e terem fraco poder individual, não deixam por isso de ser credores de pleno direito e ser merecedores, aliás, de protecção do Estado, não de desprotecção.
VIII) Existindo, como existe, presentemente, um problema mais geral de finanças públicas, este problema é de todas as pessoas, pensionistas ou não, singulares e colectivas, não é só dos contribuintes e pensionistas do patamar B. E atenção, um hipotético corte fiscal anual e permanente (vitalício) aplicado ao fluxo de pensões do patamar B, seria matematicamente equivalente a um imposto one shot sobre todo o “capital contributivo”. Essa seria uma escolha política indecente, anti-equitativa, a não ser que um análogo “imposto one shot”, com uma análoga “isenção de base”, incidisse igualmente sobre todas as outras formas de riqueza.
(*) O presente artigo é extraído e adaptado de um pequeno texto que escrevi no seguimento de um workshop sobre pensões e futuro, realizado na Gulbenkian. Agradeço aos coordenadores do workshop a anuência para antecipar este excerto.
Economista, ex-ministro das Finanças