Envelhecimento quê? – relato político-pessoal de uma noite à porta do hospital
Aqueles que tratam das funções sociais do Estado vejam lá como se tira um velho acamado de uma urgência hospitalar, à noite.
Imagine-se ontem, perto da meia-noite, na entrada das urgências de um grande hospital. Reina a calma, não há grande afluência. Tudo parece bem organizado e, dos seguranças, aos maqueiros e aos polícias, todos são diligentes e cordiais. Fazem o que devem com bom ar. No guichet você é atendido por pessoas simpáticas que, com vários números de telefone num papel, ligam para todos aqueles que o podem ajudar a resolver o seu problema. Estes, ou não atendem, ou não estão por perto, ou estão desligados, ou não fazem àquela hora o serviço pedido, ou estão ocupados com outros utentes... Inicialmente você tem dificuldade em perceber como se age numa situação nova e desconhecida para si. Tenta fixar alguns pontos básicos para se orientar e procurar resolver o assunto. O cenário tem todas as condições para um daqueles filmes de grande qualidade, de natureza antropológico-urbana, em que uma estória quotidiana se desenrola em contexto real e adverso e em que pessoas comuns tentam situar-se e agir. Miguel Gomes ou João Canijo podiam ser para ali chamados, em registo lento, que fixasse caras e ações. Uma câmara deste novo cinema ficava ali bem. De facto, circula muito gente e você começa a ver que quase todos prestam o serviço que resolvia o seu problema. Nessa altura, também já percebeu que o melhor é começar você mesmo a tentar encontrar uma solução por mão própria. Na realidade, o assunto está apenas nas suas mãos, apesar da simpatia das pessoas do guichet. Vai falar com vários bombeiros das ambulâncias que lá estão: não, não é a zona deles; não, o veículo é para outras funções; não, o comando não deixa; não, têm antes de ir a Leiria, ou a Aveiro. “Amigo, eu fazia, mas não posso...” Até de “parâmetros” me falaram, o que tornou uma recusa definitivamente convincente a uma hora daquelas... Como o problema se resolve com as própria mãos, a solução tem de nos vir parar às mãos. E assim foi. Uma jovem bombeira diligente, com quem eu devia ter falado primeiro se soubesse que ela existia, deu-me um toque no braço e disse-me: “Senhor José, fique descansado, eu trato-lhe disso. Tenho é que ir primeiro a Aveiro. Pela meia-noite e 45, ligue, que eu venho cá, se ainda precisar”. E assim foi. Perto das 2 da manhã estava a chegar e até estava disponível, ela, para ajudar outros Senhores Josés que ali estivessem. E estavam. Estava uma senhora, já de idade madura, que ali vai frequentemente com o marido, e que precisava, para uma distância de minutos como a minha, de conseguir chegar a casa durante essa noite, para não esperar pela manhã. A competência que, entra as 11 e a meia-noite, eu tinha adquirido acerca daquele mundo – daquele “mercado”, dira quem usa termos muito em voga – permitiu-me estabelecer o contacto necessário e ser parte da solução do problema da senhora. Entretanto as pessoas do guichet já tinham sido substituídas mas a simpatia e a vontade de ajudar permanecia.
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Imagine-se ontem, perto da meia-noite, na entrada das urgências de um grande hospital. Reina a calma, não há grande afluência. Tudo parece bem organizado e, dos seguranças, aos maqueiros e aos polícias, todos são diligentes e cordiais. Fazem o que devem com bom ar. No guichet você é atendido por pessoas simpáticas que, com vários números de telefone num papel, ligam para todos aqueles que o podem ajudar a resolver o seu problema. Estes, ou não atendem, ou não estão por perto, ou estão desligados, ou não fazem àquela hora o serviço pedido, ou estão ocupados com outros utentes... Inicialmente você tem dificuldade em perceber como se age numa situação nova e desconhecida para si. Tenta fixar alguns pontos básicos para se orientar e procurar resolver o assunto. O cenário tem todas as condições para um daqueles filmes de grande qualidade, de natureza antropológico-urbana, em que uma estória quotidiana se desenrola em contexto real e adverso e em que pessoas comuns tentam situar-se e agir. Miguel Gomes ou João Canijo podiam ser para ali chamados, em registo lento, que fixasse caras e ações. Uma câmara deste novo cinema ficava ali bem. De facto, circula muito gente e você começa a ver que quase todos prestam o serviço que resolvia o seu problema. Nessa altura, também já percebeu que o melhor é começar você mesmo a tentar encontrar uma solução por mão própria. Na realidade, o assunto está apenas nas suas mãos, apesar da simpatia das pessoas do guichet. Vai falar com vários bombeiros das ambulâncias que lá estão: não, não é a zona deles; não, o veículo é para outras funções; não, o comando não deixa; não, têm antes de ir a Leiria, ou a Aveiro. “Amigo, eu fazia, mas não posso...” Até de “parâmetros” me falaram, o que tornou uma recusa definitivamente convincente a uma hora daquelas... Como o problema se resolve com as própria mãos, a solução tem de nos vir parar às mãos. E assim foi. Uma jovem bombeira diligente, com quem eu devia ter falado primeiro se soubesse que ela existia, deu-me um toque no braço e disse-me: “Senhor José, fique descansado, eu trato-lhe disso. Tenho é que ir primeiro a Aveiro. Pela meia-noite e 45, ligue, que eu venho cá, se ainda precisar”. E assim foi. Perto das 2 da manhã estava a chegar e até estava disponível, ela, para ajudar outros Senhores Josés que ali estivessem. E estavam. Estava uma senhora, já de idade madura, que ali vai frequentemente com o marido, e que precisava, para uma distância de minutos como a minha, de conseguir chegar a casa durante essa noite, para não esperar pela manhã. A competência que, entra as 11 e a meia-noite, eu tinha adquirido acerca daquele mundo – daquele “mercado”, dira quem usa termos muito em voga – permitiu-me estabelecer o contacto necessário e ser parte da solução do problema da senhora. Entretanto as pessoas do guichet já tinham sido substituídas mas a simpatia e a vontade de ajudar permanecia.
Pelas três da manhã a minha mãe já estava na sua cama, depois de ter tido alta nas urgências cerca das 23h. O marido da senhora deve ter chegado pouco depois ao 2º andar sem elevador, do bairro ali ao pé do hospital. Os dois bombeiros devem ter transportado a maca escada acima e resolvido a preocupação maior da senhora, aquelas escadas.
O que estava em causa, como já terão descoberto, era só transportar pessoas acamadas que tinham saído da urgência já noite e que não podiam vir nos carros dos familiares que estavam à porta.
Entretanto eu percebi que sim, que para aquele assunto talvez não seja errado falar de um “mercado”. Identificam-se players, persentem-se normas “regulatórias”, há “ativos específicos” e é preciso negociar, embora em posição assimétrica. É um mercado em que há meia dúzia de privados e umas instituições daquelas que vivem na orla do Estado, com relevo para os bombeiros que segmentam esse mercado e tornam o acesso difícil. É disto que numa noite fria depende transportar um doente acamado, que é preciso colocar na sua cama depois de ter tido alta de uma situação aguda às 11h da noite nas urgências de um hospital, para onde foi pelo INEM. De um doente cuja família ali estava, podia fazer tudo, mas não tinha um carro com maca, diacho...
O envelhecimento ativo e saudável é um tema do mais moderno que há. Contemporâneo, estratégico, perspicaz. É um “desafio societal” da União Europeia na atual fase de programação das suas políticas estruturais. Convoca conhecimento científico do melhor que há, é matéria de grandes reuniões internacionais, as mais sonantes instituições (incluindo a minha universidade) colocam-se na grelha de partida para tratarem do assunto, há inúmeras cidades que já se consideram “capital” disto mesmo. Os discursos de muitos stakeholders revelam bem as coisas fundamentais. Eu próprio já me pronuncie sobre isso com pertinência e, vamos supor, elegância. Se tivesse a palavra numa dessas grandes reuniões procuraria não deixar por mão alheias a possibilidade de ser veemente, estratégico e de vistas largas. Bruxelas, Berlim, sei lá o quê... Sonho aliás com o futuro “campus da vida” pensado para Coimbra, onde tudo estará sistemicamente presente e os velhos terão aquilo que os farão felizes, para que a sua vida siga um linha só com um declínio e uma ruptura, lá longe. E em tudo isto sou e serei muito sincero. Não tenho dúvida que este assunto é importante.
Aqueles que tratam das funções sociais do Estado vejam lá como se tira um velho acamado de uma urgência hospitalar, à noite. Vejam que poder entregaram à “indústria” dos bombeiros, vejam que lugar público deixaram vazio.
Eu não sou de dizer a frase batida “só neste país...”. Não a digo nem a repito. Nem a respeito. Porque, por exemplo, sei que sabemos levar rapidamente a gente que precisa até ao hospital. E trata-la bem. E prolongar-lhe a vida. O serviço do INEM mostra isto. Mas há sempre, neste país capaz, uma parte esquecida (o raio das coisas pela metade...). Uma parte esquecida ou apropriada por alguém, sorrateiramente. Neste caso, trata-se apenas de saber trazer para casa, para as suas camas, porventura às 3 da manhã de uma noite fria, pessoas indefesas. Contra quem é que é preciso fazer alguma coisa? Com quem é que é preciso fazer o que falta?
Envelhecimento quê? Envelhecimento ativo e saudável? OK, vamos a isso...
Prof. da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, membro da Assembleia Municipal de Coimbra pela candidatura independente Cidadãos por Coimbra