Pastilha elástica, petróleo e um par de botas
A inoportuna presença das pastilhas no solo urbano é o termo de uma longa história de escaramuças com a sustentabilidade.
Com horror e espanto, só agora fiquei a saber que afinal a pastilha elástica é feita de petróleo. Jamais o tinha imaginado. Como é que aquela saborosa massa mastigável pode advir, na essência, de um líquido preto, tóxico e proscrito?
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Com horror e espanto, só agora fiquei a saber que afinal a pastilha elástica é feita de petróleo. Jamais o tinha imaginado. Como é que aquela saborosa massa mastigável pode advir, na essência, de um líquido preto, tóxico e proscrito?
Cheguei a esta verdade por obra de uma opulenta concentração de pastilhas à volta de um bueiro. Na verdade, elas estão por todo o lado, esparramadas em incontáveis pintas brancas sobre as ruas e passeios, como uma dermatite do pavimento. É o resultado da sua anárquica ejecção bucal, sem regras nem escrúpulos, tão logo cumpram a sua inútil função mascável.
Por cada chiclete achatada no chão haverá um pé que um dia a esmagou. E só o infeliz que teve esta aderente experiência na sola do sapato é que será conhecedor da sua existência – pois a visão humana já está tão acostumada àqueles discos esbranquiçados que já nem os nota.
Naquele ponto, porém, a concentração era inescapável à vista. Contei quase 200 pastilhas em menos de um metro quadrado – mais ao redor da grade da sarjeta do que sobre ela propriamente dita. Se a intenção era mandá-las para o esgoto, há muita gente com falta de pontaria.
Em novas observações, identificaram-se outros hotspots: à volta dos bancos das praças, junto ao muro da escola, à porta de cafés e restaurantes, nas ruas pedonais. Há aí matéria abundante para uma sócio-geografia da chiclete, desde que os investigadores não se distraiam a trincar o próprio objecto de estudo.
A inoportuna presença das pastilhas no solo urbano é o termo de uma longa história de escaramuças com a sustentabilidade. As gomas de mascar surgiram entre astecas e maias, há milhares de anos. Eram feitas com o látex de uma árvore, que os cientistas baptizaram de Manilkara zapota. Àquela seiva dava-se o nome de tizctli, depois imortalizado como chicle.
A partir do final do século XIX, quando os norte-americanos descobriram que era possível fazer dinheiro com aquilo, as árvores foram esventradas em doses comerciais. Em troca de um mero prazer dentário, quase se vai um elemento único da biodiversidade da América.
Salvou-o o petróleo e o seu universo mágico de polímeros. E o que pomos hoje na boca é borracha sintética, devidamente condimentada. Pouparam-se as plantas mas criou-se uma nova dependência, agora de um combustível fóssil, que neste caso não se queima mas se mastiga.
Os fabricantes não revelam o que está na “goma-base” à qual se adicionam aromatizantes, adoçantes, colorantes e conservantes. Sabe-se apenas que contém polímeros, ceras e amaciadores, segundo a Associação Internacional de Pastilhas Elásticas – um organismo sério mas com um nome que parece brincadeira.
Com 1,7 biliões de unidades produzidas por ano e a maior parte atirada para onde não se devia, a goma já mascada transformou-se num lixo difícil de gerir. Não se dissolve, degrada-se muito lentamente e gruda como super-cola nos passeios, só cedendo a agulhetas de água pressurizada.
Perante o problema, instalou-se a guerra. Singapura proibiu a pastilha elástica, ponto final. No Reino Unido, há multas de quase 100 euros para quem as cuspir para o chão. Em Portugal, a ordem é não pisar.
Agora há pastilhas biodegradáveis, produzidas com a base original. Depois de tanto estrago, voltamos ao princípio. Também já se reciclam, quem diria. Afinal, é plástico. E assim, aquilo que antes nos entretinha a boca pode depois se transformar num par de botas. Ainda bem que não é o contrário.