Morreu Kurt Masur, um grande maestro humanista
O maestro alemão, um dos mais respeitados e admirados músicos da sua geração, foi responsável pela reabilitação da Orquestra Filarmónica de Nova Iorque. Morreu em Greenwich, Connecticut, aos 88 anos.
Kurt Masur era o filho que o pai desejava electricista, mas que decidiu estudar música, dedicando-se ao piano, ao órgão, ao violoncelo e à percussão. Foi o maestro cujo prestígio na então República Democrática Alemã era tal que a sua voz impediu um banho de sangue quando das manifestações pró-democracia que culminariam na queda do Muro de Berlim – e que seria sugerido para líder máximo da nação antes da reunificação alemã. Foi o humanista que acreditava no poder redentor da música. E foi o homem que recuperou a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque como uma das mais admiradas e prestigiadas.
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Kurt Masur era o filho que o pai desejava electricista, mas que decidiu estudar música, dedicando-se ao piano, ao órgão, ao violoncelo e à percussão. Foi o maestro cujo prestígio na então República Democrática Alemã era tal que a sua voz impediu um banho de sangue quando das manifestações pró-democracia que culminariam na queda do Muro de Berlim – e que seria sugerido para líder máximo da nação antes da reunificação alemã. Foi o humanista que acreditava no poder redentor da música. E foi o homem que recuperou a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque como uma das mais admiradas e prestigiadas.
Masur, que revelara em 2012, depois de uma série de concertos cancelados, que sofria da doença de Parkinson, morreu este sábado em Greenwich, Connecticut, aos 88 anos. A morte foi anunciada pelo presidente da Filarmónica de Nova Iorque, Matthew VanBesien, que elogiou o antigo maestro da Orquestra (ocupou o cargo entre 1991 e 2002) ao afirmar que Masur “deixou um legado que continua vivo”.
Nascido em Brieg, então na Silésia alemã, hoje a cidade polaca de Brzeg, a 18 de Julho de 1927, Kurt Masur venceria a vontade do pai e dedicar-se-ia a tempo inteiro àquela que desde cedo viu como a sua vocação. Uma lesão inoperável no tendão da mão direita, aos 16 anos, impediu-o de seguir carreira como instrumentista, o que o obrigou a concentrar os seus esforços e talento na função de maestro. O acontecimento infeliz conduziu-o inadvertidamente ao caminho, o da regência de orquestras, que o tornou mundialmente celebrado, e deixou como consequência aquela que se tornou uma das suas imagens de marca – a lesão obrigou-o a prescindir de usar a batuta.
Depois de combater no exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial, completou os estudos e iniciou o seu percurso profissional em várias orquestras e companhias de ópera da Alemanha de Leste. O primeiro cargo de prestígio surgiu enquanto maestro da Filarmónica de Dresden, que dirigiu entre 1967 e 1972, mas foi enquanto Kappelmeister da Gewandhaus, em Leipzig, que começou a firmar o seu prestígio, tanto nacional, como internacional. Manteve o cargo durante 26 anos sem se comprometer com o regime comunista ditatorial que liderava o país, o que não impediu que as autoridades lhe devotassem admiração e respeito – o mesmo, de resto, que sentia todos os dias nas ruas de Leipzig por parte da população.
Só assim se explica que, em Outubro de 1989, no auge das manifestações pela democracia iniciadas em Leipzig e quando um confronto entre manifestantes e polícia parecia inevitável, a sua intervenção tenha impedido um banho de sangue. Convidou representantes dos dois lados a debater na Gewandhaus e de lá saíram com uma mensagem apelando à não-violência considerada fundamental para a revolução pacífica que se seguiu. Foi difundida por ele, um humorista, um membro da Igreja e representantes governamentais através da rádio e de altifalantes nas ruas.
Dois anos depois, aquele homem imponente pela estatura (media 1,90m) e pela disciplina com que liderava os seus músicos, chegava a uma Filarmónica de Nova Iorque que, descreve o New York Times em obituário, se transformara numa orquestra “taciturna” e “tépida” durante a regência de Zubin Mehta. Kurt Masur esteve longe de ser a primeira escolha. Antes, os dirigentes da Filarmónica receberam recusas de Claudio Abbado, Colin Davis ou Bernard Haitink, e o anúncio da chegada do maestro alemão foi recebida com cepticismo. Desconfiava-se da sua devoção pelos clássicos do Romantismo e da sua capacidade em abordar repertório moderno e contemporâneo e temia-se que o seu carácter meticuloso e disciplinado colidisse com o temperamento dos músicos da orquestra. Porém, quando a abandonou onze anos depois, os elogios eram unânimes. Escreve o New York Times que nesse período a Filarmónica de Nova Iorque recuperou o seu vigor musical, conseguiu novos contractos discográficos e boa exposição radiofónica, e atraiu novos públicos, o que rejuvenesceu a sua audiência.
“Não sou um maestro do velho Oeste. Claro que a orquestra esperava alguém que a empurrasse em determinadas direcções, mas eu, muito simplesmente, convenci-a. Quem me receia, não me conhece”, defendia em 1999. Elogiado pela sua direcção de obras como a Pathétique de Tchaikovski ou o Martírio de São Sebastião, de Debussy, e apaixonado pela obra de compositores como Beethoven, Brahms, Mahler ou Mendelssohn, não deixou por isso de encomendar novas obras a compositores como Thomas Adès, Hans Werner Henze ou Sofia Gubaidulina.
Deixa também uma obra discográfica vasta e de destaque. O Performance Today, histórico programa da NPR, a rádio pública americana, inclui duas delas na sua lista de essenciais: as Four Last Songs de Richard Strauss, com a soprano Jessye Norman e a Orquesta Gewandhaus de Leipzig, e o Brahms’ Violin Concerto, com a violinista Anne-Sohpie Mutter e a Filarmónica de Nova Iorque. O público português teve o privilégio de o ver com aquela orquestra em 2000 e 2001, no Coliseu dos Recreios, integrado no Ciclo das Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian. A maestrina Joana Carneiro, que trabalhou com Kurt Masur, citou-o como um dos seus ídolos numa entrevista ao PÚBLICO. Disse-lhe que “um maestro é sobretudo um líder espiritual”. Ele mesmo dizia ao The Times, em 1991: “Não quero ser chamado um ‘prodígio’. O prodígio é a música”.
Na mensagem em que anunciou o falecimento, Matthew VanBesien destacou a crença de Masur no valor moral da música. “O que recordamos de forma mais vívida é a crença profunda de Masur na música como uma manifestação de humanismo”, cita a BBC News. “Sentimos isto de forma particularmente poderosa na sequência do 11 de Setembro, quando ele conduziu a filarmónica [dia 20 de Setembro] numa interpretação tocante do Requiem Alemão de Brahms, e quando músicos da orquestra deram concertos de câmara gratuitos em redor do Groud Zero”.
Kurt Masur abandonou a Filarmónica de Nova Iorque em 2002, sendo apontado de seguida como seu Director Musical Emérito, cargo criado propositadamente na ocasião. Tornou-se nesse mesmo ano director musical da Orquestra Nacional de França, e aí se manteve até 2008. Foi paralelamente maestro titular da Filarmónica de Londres (entre 2000 e 2007) e maestro convidado honorário da Filarmónica de Israel.
Casado três vezes (o segundo casamento acabou em tragédia, com a mulher morta num acidente de viação da qual ele próprio saiu com ferimentos graves), deixa viúva a soprano japonesa Tomoko Sakurai. O filho de ambos, um dos cinco do maestro, é o cantor e também maestro Ken-David Masur.