Contrariando alguns mitos sobre Quioto, Paris e Portugal
O acordo climático de Paris apenas pode enquadrar aquilo que vai ser agora o foco da atenção: como concretizar as metas e como ir mais longe.
O Acordo de Paris marca uma nova etapa no confronto com a ameaça global das alterações climáticas e comporta uma complexidade de temas, desde a mitigação ao financiamento, passando pela adaptação ou as questões complexas da gestão do risco de perdas e danos futuros. Um acordo com essa abrangência é necessariamente difícil de negociar e difícil de compreender. Sobre o acordo, assim como sobre o seu antecessor – o Protocolo de Quioto – têm surgido algumas notícias/comentários que importa contraditar, para uma melhor compreensão pública do seu alcance. Seguem-se alguns dos comentários lidos/ouvidos.
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O Acordo de Paris marca uma nova etapa no confronto com a ameaça global das alterações climáticas e comporta uma complexidade de temas, desde a mitigação ao financiamento, passando pela adaptação ou as questões complexas da gestão do risco de perdas e danos futuros. Um acordo com essa abrangência é necessariamente difícil de negociar e difícil de compreender. Sobre o acordo, assim como sobre o seu antecessor – o Protocolo de Quioto – têm surgido algumas notícias/comentários que importa contraditar, para uma melhor compreensão pública do seu alcance. Seguem-se alguns dos comentários lidos/ouvidos.
1. Portugal só cumpriu as metas do Protocolo de Quioto à custa de créditos de projectos nos PALOP
A este comentário só há uma forma de responder: Portugal nunca comprou créditos de redução de emissões aos PALOP pela simples razão de que estes países não tinham esses créditos para vender. Sei-o, porque estive envolvido do lado do Governo português no programa de compra de créditos, e porque, uma vez saído do Governo, assessorei alguns dos projectos nos PALOP que se vieram a realizar. Na verdade, Portugal cumpriu – e bem – as metas de Quioto por três efeitos: a queda das emissões por via da crise financeira e económica que o país vive; a queda acentuada da intensidade carbónica da nossa economia por via do investimento em renováveis e eficiência energética, e a contabilização do sequestro de emissões do nosso sector florestal. Importa também desmistificar: a compra de créditos de redução de emissões pelos governos foi uma resposta legítima às metas do Protocolo de Quioto e, no caso de Portugal, mesmo não tendo sido necessária, não implica uma má gestão da nossa posição de cumprimento, muito pelo contrário.
2. O Acordo de Paris não é vinculativo
A resposta a esta afirmação é um pouco mais complexa, porque necessita de contexto. O que se entende por “vinculativo”? Para um especialista de direito internacional público um acordo juridicamente vinculativo é o que vincula as partes a um conjunto de obrigações juridicamente escrutináveis, ou seja, que possam ser objecto de processo jurídico em caso de incumprimento. Nesse sentido, não há como enganar: o acordo de Paris contém um sem-número de obrigações juridicamente escrutináveis, mesmo em tribunais domésticos.
Já uma segunda interpretação, fruto de desconhecimento de muitos sobre o funcionamento das relações internacionais, é a de que o acordo deve ter mecanismos punitivos, de sanção sobre as partes. Esses mecanismos não existem senão em muito poucos acordos internacionais, predominantemente na área comercial, e ainda menos no caso de acordos internacionais de ambiente. Mesmo quando existem, eles muito raramente são accionados, preferindo as partes os mecanismos facilitativos em que as partes são levadas a cumprir, em vez de mecanismos sancionatórios. Assim foi também com o Protocolo de Quioto. A história demonstra que os mecanismos sancionatórios não são mais eficazes do que os facilitativos. Bastaria a experiência do Protocolo de Quioto para o infirmar.
Finalmente, e o mais importante: argumenta-se que o Acordo de Paris peca porque os objectivos de redução que as partes se autopropõem atingir (e que estavam fixados antes de Paris) não fazem parte do pacote de obrigações vinculativas e escrutináveis. Acontece que tal nunca estaria em cima da mesa, porque implicaria a saída do Acordo de Paris do segundo principal país emissor – Estados Unidos – e consequentemente do primeiro – China. Os Estados Unidos, se confrontados com um acordo desse tipo, dificilmente o assinariam e ainda mais dificilmente o ratificariam. A experiência de 30 anos de acordos internacionais de ambiente e zero ratificações por parte do Congresso dos Estados Unidos deveria fazer reflectir os que pensam de outra forma. A pretensão chinesa de paridade inviabilizaria também a sua ratificação. Idem para a União Europeia. Sendo assim, a quem beneficiaria um acordo que limitasse de alguma forma apenas metade das emissões globais?
3. O acordo não prescreve metas de redução nem trajectória global
Mais uma vez, importa ler o acordo na sua totalidade. No último dia em Paris, foram retiradas várias opções de texto que faziam menções a limites quantificados de emissões para 2050 (reduções de 40-70%; reduções de 80-95%)). Ficou inscrita em vez disso a meta de descarbonização global líquida (ou seja, o balanço entre emissões e remoções (por via das florestas ou sequestro geológico) de gases com efeito de estufa na segunda metade do século. Ao que alguns ambientalistas imediatamente alinharam por “emissões zero” só em 2099, implicando que poderíamos continuar a aumentar as nossas emissões sem limite até 2099 e em um ano então atingir a tal “neutralidade de emissões”. Importa mais uma vez olhar para a análise científica e para os outros artigos do acordo. De acordo com os modelos que temos, a meta de 1,5ºC-2ºC preconizada no acordo só é compatível com a descarbonização total da economia até aos anos 60-70 deste século. É sempre possível em termos meramente teóricos estabilizar num determinado valor de temperatura de longo prazo, se apostarmos em emissões negativas mais tarde, ou seja, em trajectórias em que, pelo aumento maior das emissões nas primeiras décadas deste século, pagamos o preço em termos de sequestro maciço no final do século. Há, contudo, variadíssimos problemas com estes cenários, a começar pela incapacidade física de sequestro das quantidades necessárias: simplesmente não temos reservatórios possíveis, mesmo que tivéssemos a tecnologia!
Sendo assim, só há uma forma razoável de ler as duas metas do acordo: a descarbonização da economia – “emissões zero” na segunda metade do século – e a meta de 1,5-2ºC implicam efectivamente emissões líquidas zero algures na década de 60. Essa mensagem é talvez a mais forte do Acordo de Paris, porque implica simultaneamente que a partir de hoje – 2015 – os Estados não poderão mais apostar em investimentos pesados com tempos de vida superiores a 20 anos nas tecnologias de carvão ou petróleo. Curiosamente, os que perceberam essa mensagem melhor foram os executivos das empresas multinacionais desses sectores, que a interiorizaram mais rapidamente do que a maioria dos ambientalistas.
4. O acordo é insuficiente, porque as metas de curto prazo levam-nos a 3ºC e não a 2º, muito menos a 1,5ºC
Esta é outra afirmação que carece de contexto. É verdade que as contribuições que as partes puseram na mesa, ainda antes de Paris, colocam o mundo numa trajectória mais coincidente com 3ºC do que com 2ºC. O primeiro ponto a ressaltar é que, na ausência destes compromissos a que as partes se auto-vincularam, os mesmos modelos e os mesmos cientistas apontavam para uma subida da temperatura na ordem dos 4,5ºC, o que indica que mesmo este primeiro esforço global de exploração de oportunidades de redução demonstrou já um potencial bastante forte. Dito isto, 3ºC é claramente insuficiente quando no mesmo acordo se projecta o limite de 1,5ºC como desejável. Mas afirmar que por isso mesmo o acordo é insuficiente é mais uma vez tresler o acordo. Não era intenção em Paris que os compromissos que de lá saíssem tivessem como objectivo garantir, em 2015, uma trajectória coincidente com 1,50C, mas garantir um mecanismo que assegurasse o aumento progressivo da ambição. Esse mecanismo está lá, e o que é mais interessante é que o mesmo faz exactamente parte das obrigações vinculativas do acordo. As partes vinculam-se juridicamente a ir mais longe na sua ambição individual nas próximas rondas de negociação.
O acordo tem certamente pontos mais fracos: o mecanismo de ambição começa demasiado tarde (apenas em 2023) para a opinião da maioria dos peritos; os mecanismos de transparência da acção que os Estados-membros se obrigam a cumprir ainda estão por definir, para dar só dois exemplos. Todavia, a reacção que li no Twitter de um ambientalista resume a visão de muitos no movimento ambientalista: “And we don’t even have to pretend this is a good deal” – nem sequer precisamos de fingir que este é um bom acordo. No final de Paris, o acordo internacional apenas pode enquadrar aquilo que vai ser agora o foco da atenção: como concretizar as metas acordadas, como ir mais longe do que as próprias metas e aumentar a ambição na próxima ronda de compromisso.