Dividimos casa porque não conseguimos morar sozinhos

Ao fim de cinco anos a viver sozinha, Sandra viu-se obrigada a partilhar casa com Vânia, que nunca morou sozinha, e outra amiga. Ricardo regressou à dos pais aos 27 anos. Nos Estados Unidos, um novo conceito de habitação junta características de residências universitárias com arrendamento low-cost. Pode partilhar casa ser uma solução?

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Sandra e Vânia partilham T5 com mais uma amiga, na baixa do Porto. Ana Marques Maia

Uma residência fora do contexto académico, um dormitório para millennials ou um espaço de habitação inspirado no coworking. Não há uma forma simples de definir o Commonspace, um novo projecto norte-americano que apresenta um conceito híbrido de coabitação: espaços pequenos e independentes, com áreas comuns, a preços significativamente mais competitivos do que aqueles praticados no mercado tradicional de arrendamento. Pensado para a geração dos millennials (isto é, jovens nascidos entre 1982 e 2004), que lutam contra a dificuldade em sair da casa dos pais e atingir a independência, o projecto de Syracuse, no estado de Nova Iorque, pode ser uma matriz aplicável a sociedades que enfrentam o mesmo problema. Segundo dados divulgados em Abril último, a média de idades de saída do lar familiar em Portugal é de 29 anos. Pode a partilha de casa entre amigos ou desconhecidos ajudar a alterar esta tendência?

“Quando és estudante tens as residências universitárias, que te ajudam a ter um espaço por um valor mais baixo. Mas, quando isso acaba, não tens essa oferta. Os preços da renda são iguais para todos, independentemente de se ter ou não emprego.” A comparação é feita por Sandra Alberto, 34 anos, que divide, com mais duas amigas, uma casa na baixa do Porto, onde recebe o P3. Depois de não ter sido colocada, esta professora de ensino especial do primeiro ciclo pesou os prós e os contras de abdicar de um apartamento só para si e optou por se mudar para um andar com cinco quartos, numa das ruas de comércio mais movimentadas da cidade. Está a pagar metade do que pagava quando vivia sozinha. Um projecto como o Commonspace, acredita, poderia ser uma alternativa para quem não consegue viver sozinho mas também não pretende dividir uma casa nos termos convencionais.

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Ricardo voltou a casa dos pais, em Paços de Ferreira, após quatro anos a viver no Porto. Ana Marques Maia

Vânia Dinis, uma das companheiras de residência de Sandra, partilha casa desde que saiu da dos pais. Aos 29 anos, nunca morou sozinha. Há sempre riscos neste estilo de vida, diz, as personalidades podem ser incompatíveis e um certo grau de adaptabilidade é essencial. É precisa alguma sorte. Tal como Sandra, Vânia trabalha num bar; os horários variam e os sonos também. Passam dias sem se cruzarem nos corredores. “Às vezes há barulho na casa e queres dormir. Isso vai acontecer inevitavelmente, tens que respeitar o espaço da outra pessoa”, aponta Sandra, para quem são “coisas que também acontecem em família”. No andar antigo que dividem, procuram “respeitar o espaço umas das outras”, bem como as áreas comuns. “Cada uma tem a sua casa-de-banho, o que é um luxo”, brinca Sandra, e as contas são acumuladas numa mesa para serem, depois, repartidas entre todas.

Partilhar casa nestes moldes pode ser visto como “uma solução para um problema, mas com uma base segura”, reflecte Cláudia Andrade, professora da Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC). Em 2007, a tese de doutoramento da docente debruçou-se sobre a transição para a idade adulta, temática sobre a qual continua a pensar. Na geração anterior, diz, “sair era algo natural, emancipatório”. “Era visto como um marcador para se ser tido, socialmente, como adulto”, algo que não se verifica nos millennials. Estes jovens adultos optam por valorizar “a autonomia em termos emocionais, o ser-se capaz de tomar decisões e fazer escolhas”. No entanto, contextualiza, é uma tendência aplicável sobretudo a famílias da classe média: “Quando fazemos este confronto com jovens provenientes de meios mais desfavorecidos, provavelmente com níveis de escolaridade inferiores, o sair ainda é visto como muito desejável.”

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“Não queria, nem quero, ter os meus pais a suportar os meus custos de estadia noutro sítio”, diz Ricardo. Ana Marques Maia

É aqui que entra a questão, já muitas vezes abordada, da formação académica dos jovens adultos. “Nunca tivemos uma geração com tanta qualificação como esta”, repete Cláudia Andrade. A este dado, Elísio Estanque, investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, acrescenta “a presença, cada vez mais incontornável, dos novos instrumentos tecnológicos de comunicação” — usados quer na esfera do lazer como na profissional — e a “propensão para um certo estilo de vida individualista” para traçar um retrato mais geral dos millennials. Por outro lado, sublinha, verifica-se uma ambivalência entre “uma tendência para o privado” e “um vínculo com o colectivo e uma necessidade de partilha”. Algo como o Commonspace, crê, pode encaixar nesta aparente contradição e canalizá-la “para o campo produtivo, da inovação, da competição profissional”.

Millennials querem privacidade sem solidão

Construído nos dois últimos andares de um edifício na baixa de Syracuse, o Commonspace vai partilhar a morada com um espaço de coworking de um dos seus criadores, Troy Evans. Com John Talarico, Evans decidiu criar um “dormitório para millennials”. À revista norte-americana The Atlantic, os dois jovens revelaram que cada uma das 21 micro-unidades de habitação terá, além de um quarto, uma pequena cozinha e uma casa-de-banho, perfazendo uma área total que ronda os 27 metros quadrados. As zonas comuns incluem uma cozinha equipada, uma sala de jogos e outra de televisão. À Atlantic, Evans e Talarico garantiram que os apartamentos “estão construídos para serem extremamente insonorizados”, por uma questão de privacidade.

Evans crê que os millennials querem ter a hipótese de “estarem sozinhos nos seus quartos, casas-de-banho e cozinhas, mas também querem ser sociais”. Tudo isto sem se sentirem sós. Como o objectivo é reunir um grupo com interesses em comum, quem se candidatar terá que se submeter a uma entrevista para poder fazer parte do rol de 21 residentes. No Commonspace haverá, ainda, um “engenheiro social para facilitar eventos de grupo e assegurar a harmonia entre os colegas de casa”. “Aqueles sectores da sociedade que têm, em sua posse, mais conhecimento e consciência da própria autonomia e iniciativa irão conviver bem com um ambiente desta natureza”, contextualiza o sociólogo do CES. Isto porque, prossegue, “podem usar a liberdade e conjugar o sentido lúdico do quotidiano com uma actividade útil, produtiva e inventiva”.

No entanto, ressalva, estas questões da coabitação devem ser pensadas de forma integrada. E iniciativas como o Commonspace “podem favorecer a proximidade entre uma lógica de preservação da reprodução familiar e do crescimento demográfico com uma outra de estímulo à produtividade e à criatividade”, sugere Elísio Estanque. “Parece-me um mundo um tanto utópico.”

Um Casulo em Portugal

Em Portugal, o projecto Casulo, de Leiria, é o que mais se assemelha ao norte-americano. Criado em 2011, combina características da hotelaria clássica e dos hostels, descreve Eric Salvado, o gestor. Num edifício onde já funcionou uma residência de estudantes do Instituto Politécnico de Leiria, 116 apartamentos T0 estão disponíveis para arrendamento low-cost, de curta a longa duração. Os preços começam nos 110 euros por mês, em regime duplo, e todos os contratos incluem televisão por cabo, água, Internet, roupa de cama e atoalhados (com troca semanal), além de mobília. A maioria dos residentes (entre 60 a 70%) são jovens estudantes, portugueses ou estrangeiros.

Mas o Casulo também é uma alternativa para profissionais, jovens ou não, de passagem pela cidade, como é o caso de André Marques. Este tradutor de 25 anos, natural de Lisboa, nunca gostou de morar em quartos. Um espaço próprio e privacidade são condições de que não abdica e, por isso mesmo, optou por arrendar um T0 individual no Casulo. Há mais de um ano que se interessou pelo conceito e pela “boa relação qualidade-preço”, com “tudo o que é preciso dentro do quarto” e zonas comuns úteis (lavandaria, lounge, sala de estudo e recepção). É certo que quando recebe visitas em casa não pode simplesmente dizer para tocarem à campainha e entrarem; é necessário que deixem a identificação na recepção. E sempre que sai deve fazer o mesmo com a chave, o que compromete “um bocadinho” a privacidade. Mas, para já, estes inconvenientes não superam as vantagens e André não pensa em mudanças. “Sou muito minimalista e o conceito serve-me perfeitamente, não sinto necessidade de ter um espaço mais personalizado.”

Voltar para casa dos pais?

As duas jovens amigas de quem já falámos não se imaginam a regressar a casa dos pais. “Trabalhamos desde muito cedo para termos as nossas coisas, o nosso espaço. Voltar para casa dos pais? Só se fosse uma situação muito grave, como não conseguir mesmo emprego”, frisa Sandra. Ricardo Guimarães, de Paços Ferreira, viveu essa “situação muito grave” e passou a integrar as estatísticas do Eurostat que dizem que os jovens portugueses são dos que saem mais tarde de casa dos pais, no conjunto dos Estados-membros da União Europeia. A média nacional situa-se nos 29 anos. Já os suecos, por exemplo, abandonam o lar paterno antes dos 20.

Cláudia Andrade, professora na ESEC, fala sobre o Commonspace comparando as realidades norte-americana e portuguesa

Depois de quase quatro anos a viver no Porto, cidade onde estudou e trabalhou, Ricardo viu-se sem emprego — e sem perspectivas. “Não queria, nem quero, ter os meus pais a suportar os meus custos de estadia noutro sítio”, explica ao P3, na sala de jantar da família, com a gata Tarantina a passear-se pelo sofá. Em Fevereiro de 2014, o jovem de 29 anos esvaziou os móveis do apartamento que ocupava no Porto e encheu as malas que levou de volta para Paços de Ferreira. Pensou que seria uma mudança temporária mas as oportunidades não surgem e, para sair de novo, só com “um bocadinho mais de arcabouço financeiro”. Sim, sentiu que tinha falhado. Ricardo, que trabalha em marketing digital, começou a ajudar o pai num pequeno negócio, tanto para equilibrar a economia familiar como para se manter ocupado. “Ser adulto é ter consciência das falhas, aprender com os erros e tornarmo-nos pessoas melhores com o passado que temos”, pensa, em voz alta, aproximando-se assim da opinião de Cláudia Andrade na importância da “autonomia emocional”.

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Planta do projecto para o Commonspace.

“De facto, tanto os pais como os filhos sentem-se confortáveis num processo onde aqueles concordam em apoiar residencialmente os filhos, até que estes consigam atingir a independência económica que lhes permita uma vida autónoma”, lê-se num trabalho assinado pela docente e publicado em 2010. A dependência residencial dos jovens reflecte, assim, “uma escolha racional por parte destes e recorda que a melhoria generalizada das condições económicas, particularmente da classe média, consequência da modernização, repercute-se ao nível das condições habitacionais”.

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“Às vezes há barulho na casa e queres dormir. Isso vai acontecer inevitavelmente, diz Sandra. Ana Marques Maia

A boa relação com os pais ajuda a minimizar o impacto de ter de adquirir novas rotinas, de ter horários de refeições para cumprir. Ricardo já não sai de casa sem dizer onde vai e quando regressa, as saídas com os amigos do Porto têm que ser programadas com mais antecedência, não tem um espaço a que possa chamar seu. “Idealizo um sofá, uns livros, uma decoração. Mas essa também é uma das coisas que faz com que não me desligue do desejo de voltar a viver fora”, continua Ricardo. A prioridade é a mesma de Fevereiro de 2014: “ter um trabalho pago” — e acentua o “pago” — para tentar uma independência financeira. O irmão mais novo regressou, igualmente, a casa; os pais de Ricardo acolheram, assim, os dois filhos que já tinham visto sair. Em vez de vazio, comenta a professora da ESEC, o ninho familiar é, cada vez mais, um "ninho preenchido".