Suposta “fonte” das secretas acusa Silva Carvalho de ser um “mitómano”
Esta é uma história que parece saída da Guerra Fria. Mas passou-se em Portugal, há cinco anos. Agora pode ditar a sorte do julgamento do ex-director do SIED. Uma testemunha chave fala ao PÚBLICO pela primeira vez.
Há várias versões desta história. Há um porto, no mar Jónico, na Grécia, e dois influentes cidadãos russos. Astakos é o nome da cidade e do porto. Alexander Burmatov e Alexander Vladislavlev, este último um dirigente do partido da Rússia Unida de Vladimir Putin, e deputado na Duma, o Parlamento russo, representavam o Estado russo, dono do porto. Subitamente, quer a pacata Astakos, quer os dois homens de negócios russos, despertaram o interesse dos Serviços de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), no Alto do Duque, em Lisboa.
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Há várias versões desta história. Há um porto, no mar Jónico, na Grécia, e dois influentes cidadãos russos. Astakos é o nome da cidade e do porto. Alexander Burmatov e Alexander Vladislavlev, este último um dirigente do partido da Rússia Unida de Vladimir Putin, e deputado na Duma, o Parlamento russo, representavam o Estado russo, dono do porto. Subitamente, quer a pacata Astakos, quer os dois homens de negócios russos, despertaram o interesse dos Serviços de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), no Alto do Duque, em Lisboa.
Foi no dia 30 de Outubro de 2010. Jorge Silva Carvalho, director-geral do SIED, pediu a três funcionários dos serviços de informações que recolhessem dados sobre o porto e “os antecedentes de dois supostos amigos do Putin”. O pedido foi dirigido ao antigo director operacional do SIED, entretanto exonerado, e ao elemento que fazia a ligação com as secretas na embaixada de Moscovo.
Porquê? O Ministério Público acredita que esta é uma das provas de que Jorge Silva Carvalho forneceu, enquanto director do SIED, informações recolhidas pelos serviços para satisfazer pedidos da empresa para a qual viria a ser contratado, um mês depois, a Ongoing. É o que diz a acusação do caso por que responde em Tribunal, acusado dos crimes de corrupção passiva, abuso de poder, acesso ilegítimo a dados pessoais e violação do segredo de Estado.
A acusação considera que "o arguido Silva Carvalho agiu (...) de modo a provar ao presidente do Grupo Ongoing que podia obter, através do Serviço de Informações da República, informação relevante para os respectivos interesses particulares (...) com o propósito de assegurar o contrato com a Ongoing.” Esta é, continua a acusação, uma história grave, susceptível de “gerar conflitos diplomáticos" e "pôr em causa a segurança de missões e de recursos humanos colocados no exterior do país".
A Ongoing pretendia adquirir a quota do Estado russo no porto, privado, de Astakos, e por isso procurou, junto de Jorge Silva Carvalho, obter informações. Mas o procedimento habitual não foi seguido. O SIED não dá às empresas, directamente, informações sobre pessoas recolhidas pelos seus agentes. Tudo tem de ser filtrado, e obedece a um protocolo. Desta vez, não foi bem assim… Um alto quadro da Ongoing, Fernando Paulo Santos, pediu directamente a Silva Carvalho. E o director do SIED respondeu. Por email.
No julgamento em que responde por estes crimes, o antigo responsável pela secreta portuguesa que opera no exterior contou uma nova versão desta história. Negando que tivesse passado o dossier sobre os dois cidadãos russos à Ongoing, Silva Carvalho defendeu-se da acusação contando uma história inédita.
Pediu para investigar os “antecedentes” dos dois cidadãos russos porque pretendia recrutá-los para a secreta portuguesa: “Quando fui confrontado com os dois russos, a primeira coisa que pensei foi na forma como poderíamos chegar à fala com aquelas pessoas, para as ter a trabalhar para nós.”
O próprio porto, na Grécia, era um “alvo” para os serviços, elucidou Silva Carvalho: “Era um porto militar usado pelos Estados Unidos para operações encobertas de envio de armas para o Médio Oriente.” Esta é talvez a parte mais desconcertante do depoimento, uma vez que o ex-director do SIED parece querer dizer que os EUA usam um porto privado russo para desembarcar armas, e que a secreta portuguesa vigia atentamente estas manobras, mas ainda há mais…
E Fernando Paulo Santos? Silva Carvalho continua a sua “revelação”: Era uma “fonte” da secreta, que recebia um pagamento (que segundo informações não confirmadas costuma ser próximo dos 5 mil euros mensais, segundo a prática das secretas) e tinha o nome de código “Panda”. “Era usado pelos serviços para fazer passar mensagens à nomenclatura de Angola através daquilo que designamos como canais negros, que são paralelos aos canais diplomáticos”, afirmou Silva Carvalho, no julgamento, na passada quinta-feira, 3.
A Ongoing, que era afinal a principal interessada em toda a história dos dois cidadãos russos, porque queria ser sócia do porto grego, nem foi chamada para a versão dos factos de Silva Carvalho. O ex-espião garantiu ao Tribunal que nem sequer sabia que Fernando Paulo Santos era quadro da empresa… “Só em Fevereiro ou Março de 2011 é que me apercebi disso, quando ele foi chefiar a Ongoing África.”
Difamação e contradições
“É mentira”, afirma Fernando Paulo Santos, ao PÚBLICO. O empresário luso-angolano esclarece, aliás, que pretende pedir ao Ministério Público que o arrole como testemunha para apresentar, em Tribunal, a sua versão desta história que, como veremos, é totalmente diferente da de Silva Carvalho. Tanto, que está a preparar uma queixa-crime contra o ex-director do SIED por difamação. “Esse senhor é um mitómano”, conclui Santos.
A primeira incongruência que Fernando Paulo Santos aponta na versão de Silva Carvalho é precisamente o desconhecimento da sua ligação à Ongoing. Se fosse mesmo sua “fonte”, ainda por cima uma que “controlava directamente”, como é que o espião podia desconhecer o seu principal emprego? Mas há mais… Santos afirma ter testemunhas de que os dois se encontraram, na sede da Ongoing, quando Silva Caravalho ainda dirigia o SIED.
Fernando Paulo Santos quer saber os valores que Silva Carvalho afirma ter-lhe pago e quer ver as provas do pagamento. “Nunca recebi um cêntimo.” Não só garante nunca ter recebido, como que se recusaria a trabalhar para os serviços de informações. “Seria indigno. Nunca trairia o país onde nasci [Angola], nem os amigos que possa lá ter. E nunca fui informador de ninguém.”
Nem podia sê-lo, garante, porque entre o ano de 2007, quando conheceu Silva Carvalho, e 2009, Fernando Paulo Santos não viajou sequer para Angola.
A história, garante, é bem mais simples. A Ongoing pretendia uma sociedade com os dois russos, comprando uma parte do porto privado (e não militar, como afirma Silva Carvalho) de Astakos. A finalidade seria instalar ali uma fábrica de fertilizantes para exportar para o Brasil. Segundo Fernando Paulo Santos, a ideia do negócio partiu de Nuno Vasconcellos, o dono da Ongoing, que lhe terá pedido para que contactasse Silva Carvalho, no SIED. Santos pediu, Silva Carvalho respondeu, esta parte é pacífica, e está documentada pelo Ministério Público. Mas o negócio gorou-se.
Era um investimento avultado - mais de mil milhões de euros -, para o qual a Ongoing não tinha capacidade financeira. Mas Nuno Vasconcellos terá insistido, alegadamente porque pretendia, através dos russos, aproximar-se de Vladimir Putin, para o incluir no lote de investidores nos seus produtos financeiros.
Informações como o Google
Fernando Paulo Santos viajou, com outro quadro da Ongoing, Vasco Rato, para a Grécia. Conheceram o porto e os dois russos. E ambos desaconselharam a Ongoing de avançar no negócio. Vasco Rato contou, à revista Sábado, uma versão semelhante desta história. E até brincou com a “qualidade” do relatório dos serviços secretos fornecido por Silva Carvalho: “O que eu possa eventualmente ter lido sobre os russos não me surpreendeu porque nada acrescentou ao que eu já sabia quando investiguei no Google.”
Quando vieram a Lisboa, em 2011, os dois russos foram recebidos na Ongoing por um grupo de administradores que já incluía Silva Carvalho. Numa nota quase humorística, Santos revela que o nome de código “Panda” existia, mas era na Ongoing, e para o próprio Silva Carvalho. A alcunha Panda do Kung-Fu terá pegado, dada a conhecida prática daquela arte marcial pelo antigo espião.
O antigo director-adjunto do SIED, Heitor Romana, que estava colocado em Moscovo à data dos factos, e a quem Silva Carvalho pediu informações sobre “os antecedentes de dois supostos amigos do Putin” condenou a utilização abusiva dos serviços de informações para fins privados. Falando no julgamento de Silva Carvalho, Romana confirmou ter recebido o pedido e ter respondido para o email do ex-director do SIED. “Vejo, de qualquer forma, com muita perplexidade a entrega de um documento oficial dos serviços a uma entidade externa”, no caso a Ongoing, via Fernando Paulo Santos. “Isso é impensável.”
A verdade é que, segundo provas da acusação, Silva Carvalho já negociava com Nuno Vasconcellos a entrada na Ongoing muito antes destes estranhos pedidos para Moscovo. No dia 23 de Outubro, uma semana antes de pedir a Heitor Romana que investigasse os dois cidadãos russos com que a Ongoing pretendia negociar, Jorge Silva Carvalho comunicou por sms a Nuno Vasconcellos: “Estou decidido. Se quiseres, a partir de 01DEZ10 sou da tua equipa.”
Ainda antes de entrar, oficialmente, em funções na Ongoing, já Silva Carvalho recebera uma carrinha Mercedes da empresa, que agradeceu a Vasconcellos e a Rafael Mora, no dia 30 de Novembro. “A carrinha é muito bonita.” É por isso que Fernando Paulo Santos quer testemunhar neste caso: “Jorge Silva Carvalho não olha a meios para tentar contrariar a acusação, e é por isso que inventou esta história falsa sobre mim.”
Menos de um ano depois da entrada do ex-director do SIED na Ongoing, rebentava o escândalo. A vigilância sobre o telemóvel do jornalista Nuno Simas (que Carvalho começou por negar, mas já admitiu em tribunal), e os convites que diz ter recebido de Miguel Relvas para chefiar as secretas (negados por Relvas e Passos Coelho) viriam a tornar insustentável a carreira “privada” do espião. A Ongoing também não resistiria à queda dos seus dois principais apoios, o BES e a PT, e à mudança de poder no BCP. Por isso, este julgamento, além de trazer à memória algumas passagens de guiões televisivos, como a série Homeland, também é revelador do fim de uma certa era em Portugal.
A ligação maçónica
Jorge Silva Carvalho e Fernando Paulo Santos conheceram-se em 2007, quando participaram, juntos, numa cerimónia maçónica da famosa Loja Mozart. O primeiro era o director-geral dos Serviços de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), enquanto o segundo é um homem de negócios luso-angolano.
A maçonaria viria a juntá-los, indirectamente, mais tarde. Um “irmão” da mesma loja, Nuno Vasconcellos, convidou-os para trabalharem na sua empresa, a Ongoing, em 2010. Santos primeiro, como responsável dos projectos africanos da empresa. Carvalho juntar-se-ia ao grupo no final desse ano. Já lá estavam outros maçons da mesma loja: Rafael Mora, o número dois de Vaconcellos, Agostinho Branquinho e Vasco Rato, duas importantes figuras do PSD, e João Paulo Alfaro, ex-SIED.