No Natal regresso à infância
São sete da noite de um dia 23 de Dezembro, já não sei precisar de que ano. O meu pai ainda está no consultório, recordo o meu irmão atrás de um livro, a minha mãe e a minha avó dão as últimas instruções às empregadas, é necessário que tudo corra bem no Natal que se aproxima.
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São sete da noite de um dia 23 de Dezembro, já não sei precisar de que ano. O meu pai ainda está no consultório, recordo o meu irmão atrás de um livro, a minha mãe e a minha avó dão as últimas instruções às empregadas, é necessário que tudo corra bem no Natal que se aproxima.
Chegam os meus tios e o primo Filipe, espreito os pacotes de presentes que a minha tia procura disfarçar. O Filipe passeia logo pela quinta, à procura de fetos raros ou de gatos escondidos. Jantamos sem pressa, ainda não é Natal. O meu pai tenta centrar a conversa na situação política, mas todos preferimos não ter tema, deixar correr os diálogos sem rumo, escutar as novidades da família.
A véspera de Natal começava com um passeio pela Vila Velha, a que se seguia uma tarde de jogo de cartas e umas voltas pela quinta. Depois, vinha o jantar especial: peru assado de sabor divino, com um recheio de trufas e nozes que nunca mais reencontrei. Tudo preparado e cozinhado pela Assunção, tarefa que a ocupava durante vários dias, quase sem intervalos. A minha avó, perante o espanto de todos, dizia sempre: “Acho que o recheio, este ano, não está como de costume. Não acham?”
Tenho hoje a certeza que a avó queria ouvir dizer que estava melhor do que nunca, mas o certo é que ainda neste Natal de 2015 estarei lá em Sintra, a olhar para os candelabros da minha avó, por certo o Jorge e o Filipe vão dizer que está tudo uma delícia e eu comerei a correr para apressar todos para a magia dos presentes. No dia de Natal a festa continuava, mais passeios por Sintra e depois um jantar “de restos” que era de novo um manjar real. No dia seguinte, 26, os meus tios e primos iam-se embora e eu ficava com uma sensação de vazio que hoje reproduzo, quando no final do dia de Natal vejo partir a minha tribo actual.
No Natal regressamos ao passado. Aqueles que morreram e deixaram saudades aparecem-nos a espaços, vigiam as nossas reacções e recordam como foram importantes para nós, mas a alegria dos mais novos a tudo se sobrepõe. Os meus netos não ligam ao peru e nunca gostam do recheio, não porque sejam exigentes como eu, mas porque também, como o avô no passado, preferem comer depressa para se precipitarem sobre as prendas. Eu espero que tudo corra bem, mas tenho de me conter para não fazer comparações e viver com alegria os momentos de hoje. É bom nunca estar sozinho nestes dias tão especiais. Este ano tentarei novo recheio para o peru, podem crer que tudo farei para não fazer comparações com o passado de Sintra.
No Natal gosto de tudo: das compras nos últimos dias, dos filmes antigos que a televisão repete, do circo natalício, da chegada de filhos e netos, do balanço dos avós quando ficam de novo sós. E acho muito bem que as pessoas dêem as mãos, mesmo que durante o ano nunca o façam. Aprovo que se promova a momentânea alegria em lares onde ela não abunda. Concordo que se façam telefonemas de Boas Festas para pessoas com quem não falamos quase nunca. Procuro incentivar os filhos de pais separados a tentarem estar com pai e mãe, mesmo que isso implique mais deslocações e algum cansaço. Não deixo de encorajar almoços e jantares de Natal em locais de trabalho, sem esquecer que se vão sentar lado a lado pessoas que se criticaram muitas vezes. E acho bem que todos os crentes celebrem Jesus, agora que o Natal é cada vez mais uma festa de família, de partilha e de esperança no futuro.
Num momento do mundo em que se torna difícil transmitir uma mensagem de fraternidade, celebremos o Natal com alegria e confiança.