Um maliano e um francês, uma serena e majestosa humanidade

Ballaké Sissoko e Vincent Ségal gravaram Musique de Nuit num terraço de Bamako. Uma kora, um violoncelo, um mundo que se revela. E uma vitória, percebemos agora, sobre a bárbara violência destes dias.

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Claude Gassian

A noite já caíra sobre a cidade e a azáfama ruidosa do dia-a-dia, do corrupio de gente conversando, merceando, vindos do trabalho nos campos, nas lojas ou escritórios, dera lugar ao quase silêncio. Bamako, capital do Mali. Um terraço. Nele, um violoncelista e um tocador de kora. Tocam empaticamente, com gentileza e sensibilidade, absorvendo os sons que cada um vai criando, guiando e sendo guiados. Tocam com respeito pelo silêncio, delicados, mas majestosos. Tocam e, ainda assim, ouve-se o balido de uma cabra, o som de trânsito passando ao longe, a respiração de cada um deles, mãos livres sobre os instrumentos, livremente concentrados na música.

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A noite já caíra sobre a cidade e a azáfama ruidosa do dia-a-dia, do corrupio de gente conversando, merceando, vindos do trabalho nos campos, nas lojas ou escritórios, dera lugar ao quase silêncio. Bamako, capital do Mali. Um terraço. Nele, um violoncelista e um tocador de kora. Tocam empaticamente, com gentileza e sensibilidade, absorvendo os sons que cada um vai criando, guiando e sendo guiados. Tocam com respeito pelo silêncio, delicados, mas majestosos. Tocam e, ainda assim, ouve-se o balido de uma cabra, o som de trânsito passando ao longe, a respiração de cada um deles, mãos livres sobre os instrumentos, livremente concentrados na música.

Quem nos dera ter estado nesse lugar mágico que terá sido o terraço da casa de Ballaké Sissoko. Numa noite de Janeiro deste ano, o mestre da kora, companheiro de outro mestre, Toumani Diabaté, e filho de um mestre igualmente, Djelimady Sissoko, encontrou-se com o contrabaixista francês Vincent Ségal, co-fundador de uma banda de filiação electrónica, os Bumcello, de sucesso assinalável em França, e cuja carreira o levou a cruzar-se com nomes tão diversos quanto Cesária Évora, George Moustaki, Elvis Costello, Don Cherry ou os Blackalicious.

Quem nos dera? Nunca poderemos ver, mas podemos ouvir. Neste magnífico e tocante disco intitulado Musique de Nuit, entusiasmante na sua empatia tão humana, ouvir é estar lá, naquele terraço onde dois músicos de origens e culturas diferentes se encontram num terreno comum. Território amplo. Vincent Ségal: “Esta música recebe muita energia de todo o lado, de Marrocos, de Espanha, de Portugal. O que adoro em música é que, independentemente das fronteiras políticas, desde sempre existiu muita comunicação. Quando o Ballaké está a tocar, ouço qualquer coisa muito próxima da música marroquina, da música do Al-Andaluz e também algo muito próximo da música clássica, pela forma como se desenvolve e como está organizada”. Vincent fala de Ballaké, mas agora, depois de tantos anos a tocar com o companheiro maliano, podia estar a falar também de si mesmo. Musique de Nuit não é simplesmente a história de um encontro. É a história de dois músicos que se conhecem há muito e que, livres na noite de Bamako, falaram como um só.

A noite como necessidade
Ballaké Sissoko, prodígio da kora, instrumento da família da harpa originário da África Ocidental, há muito que tinha grande curiosidade pelo violoncelo. Foi o que descobriu Vincent Ségal quando, no final de um concerto, aquele o abordou para que experimentassem tocar juntos. Vincent, que fala com o Ípsilon desde Paris, já conhecia Ballaké – a música africana sempre lhe foi próxima, dado o crescimento num bairro parisiense multicultural, e o instrumento que toca o companheiro é-lhe particularmente caro: como os instrumentos de corda são a sua “família”, adora “o violão, o ngoni, o alaúde e, claro, a kora”.

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Ballaké Sissoko, prodígio da kora, tinha curiosidade pelo violoncelo. Foi o que descobriu Vincent Ségal quando, no final de um concerto, aquele o abordou para que experimentassem tocar juntos Claude Gassian

Quando Ballaké o abordou, já o conhecia. Vira-o em palco, ouvira “Tomora”, o álbum que o maliano gravou em 2005 com Alboulkadri Barry ou Rokia Traoré, ou, antes disso, o disco conjunto com Toumani Diabaté (New Ancient Strings, de 1999). Mas ouvi-lo não é o mesmo que tocar com ele. No processo que conduziu ao primeiro e celebrado álbum do duo, Chamber Music (2011), Vincent Ségal, um antigo membro da Orquestra Nacional Francesa, descobriu verdadeiramente Ballaké Sissoko. “O mais importante nele é a sensação de sabedoria que transmite e o seu sentido de improvisação. Ballaké é um mestre nisso”, elogia. “O timing dele é muito bom. É como um gato, nunca está rígido, é muito flexível. A sua sabedoria e o seu timing são belíssimos. Sempre belíssimos”. Musique de Nuit mostra-o com clareza.

É um álbum de uma natureza diferente do anterior Chamber Music - pelo meio, Ballaké Sissoko editou At Peace (2013), produzido por Vincent Ségal. “A simplicidade do primeiro nasce de ainda não nos conhecermos muito bem. Tínhamos de ouvir o outro  atentamente para que tudo estivesse correcto. Neste, não tivemos que pensar muito. Sabemos exactamente o que o outro está a fazer”.

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O som cristalino e fluído da kora acompanhado das cordas percutidas do violoncelo. A kora que cresce numa cascata de notas, que serena o ritmo para que nos recostemos de olhos nas estrelas imaginadas, maravilhados. O violoncelo que há-de soar como uma flauta poderosa, como orquestra magrebina imponente, como contrabaixo que se enlaça nas cordas luminosas da kora. A tradição cultural mandingo (aquela a pertence Ballaké Sissoko) a transformar-se em música de câmara em Prélude, a imaginar solo brasileiro em Passa Quatro (nome da localidade brasileira, em Minas Gerais, que inspirou a melodia a Vincent Ségal), os Étoile de Dakar de Youssou N’Dour, a lenda musical senegalesa, homenageados em Super Étoile, o tom grave do zumbido, criado no violoncelo, que sobrevoa Balazando, e a voz de Babani Koné, a grande cantora maliana, que agracia Diabaro – foi por ela, e por respeito a ela, que tanto queria gravar com o duo, que Ballaké e Vincent acederam a trocar o terraço por um verdadeiro estúdio. “Não podíamos recusar tê-la no álbum e não a podíamos pôr a cantar no terraço, seria estranho”, explica Ségal. “‘Somos músicos profissionais, porquê gravar aqui e não no estúdio?’, diria ela”. Talvez Babani não compreendesse, mas Ballaké e Vincent Ségal não quereriam – não poderiam – fazer Musique de Nuit de outra maneira.

Ter escolhido a noite para ambiente da gravação – assim decorre a primeira metade do disco, a segundo, mantendo esse espírito foi registada no estúdio a que Babani Koné os conduziu -, não foi propositado. Nasceu de uma necessidade. “Não é que não gostemos de tocar de dia”, explica Vincent, “mas de dia o Ballaké tem que organizar muita coisa. São quase 60 pessoas à sua volta, a família, toda a família. Há idas ao médico, a escola, uma série de coisas a que tem que estar atento”. De dia, Bamako “é uma cidade complexa e muito ruidosa”. Até que a noite cai. “Não há electricidade em todos os bairros e, excepto aos dias de festa ou ao sábado à noite, é muito silenciosa. Subimos aos telhados e todos estão a dormir”.

No terraço, naquela noite, tocaram como tocam sempre. Como tocam nos quartos de hotel, nas digressões, sempre, ou nas visitas um ao outro no Mali ou em França. “Claro que sabíamos que estávamos a gravar e essa consciência tem o seu efeito, mas passada meia-hora, mergulhamos na música e começamos a não pensar. Quanto mais não pensas, melhor. Limitas-te a tocar”. No dia seguinte, descobriram que nem toda a gente dormia enquanto tocavam. Ao caminharem pela rua, alguns vizinhos abordavam-nos. Tinham sido embalados por um violoncelo e uma kora na noite anterior e queriam agradecer.

Vincent Ségal aterrou no Mali, vindo de Paris, no dia 7 de Janeiro de 2015, o do massacre no Charlie Hebdo. Quando ouvimos, agora, o violoncelo e a kora de Musique de Nuit, a azáfama ruidosa quotidiana de Bamako acabou de ser violada, a semana passada, pelo rosto bárbaro do terrorismo – mais de duas dezenas de mortos num dos seus hotéis. Ballaké Sissoko e Vincent Ségal tocam num terraço da cidade. Ouvimos as cabras, os carros ao longe, a respiração de dois homens. E a serena majestosidade desta música como uma vitória.