Tocqueville em Angola

Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil é uma análise politológica sobre Angola na actualidade que não pode ser tomada como um panfleto ao serviço de visões partidárias.

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Trata-se de um livro que corre o risco de ser arregimentado tanto para as lutas de resistência ao Estado angolano, como para as perseguições conduzidas a partir deste último, mas tais leituras utilitárias não conseguem fazer justiça ao seu alcance analítico RUI GAUDÊNCIO

Este livro sobre Angola na actualidade é da autoria de um cientista político de Oxford. E é como um exercício de análise politológica que deve ser lido. Não se trata, pois, de um panfleto escrito por um militante, nem pode ser tomado como uma espécie de contributo ao serviço das visões partidárias. Sem negar que se trata de um livro que corre o risco de ser arregimentado tanto para as lutas de resistência ao Estado angolano, como para as perseguições conduzidas a partir deste último, considero que tais leituras utilitárias não conseguem fazer justiça ao seu alcance analítico. Que se desenganem, por isso, os que procuram ler este livro com o objectivo prático de encontrar nele argumentos para causas pré-determinadas. Tais apropriações serão sempre parcelares e superficiais, do ponto de vista da compreensão da intencionalidade e do labor do seu autor.

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Este livro sobre Angola na actualidade é da autoria de um cientista político de Oxford. E é como um exercício de análise politológica que deve ser lido. Não se trata, pois, de um panfleto escrito por um militante, nem pode ser tomado como uma espécie de contributo ao serviço das visões partidárias. Sem negar que se trata de um livro que corre o risco de ser arregimentado tanto para as lutas de resistência ao Estado angolano, como para as perseguições conduzidas a partir deste último, considero que tais leituras utilitárias não conseguem fazer justiça ao seu alcance analítico. Que se desenganem, por isso, os que procuram ler este livro com o objectivo prático de encontrar nele argumentos para causas pré-determinadas. Tais apropriações serão sempre parcelares e superficiais, do ponto de vista da compreensão da intencionalidade e do labor do seu autor.

Retomar, aqui, a perspectiva de “Oxbridge”, em que este livro foi escrito, não supõe tomá-lo por uma espécie de visão neutra, asséptica, em relação aos processos políticos e sociais que estão em curso em Angola, desde o final da Guerra Civil. Tão pouco implica esquecer a herança dos tempos coloniais. As grandes universidades anglo-americanas e muitos dos seus professores, se participaram em programas definidos politicamente, também nunca se negaram a contribuir para a pacificação dos conflitos políticos. A este respeito, basta lembrar os nomes de Isaiah Berlin do Wolfson College de Oxford, Avrom Udovitch da Universidade de Princeton e Edward Said de Columbia, para exemplificar o envolvimento de professores na resolução do conflito entre Israel e a Palestina. De igual modo, os historiadores da Angola colonial conhecem bem o contributo decisivo de alguns universitários ingleses e norte-americanos, ao lado do de jornalistas, na formação de uma opinião pública internacional favorável às lutas anti-coloniais; bem como o seu papel na denúncia dos mitos obscurantistas e das visões comprometidas da academia portuguesa em relação ao colonialismo, as quais se reproduziram até aos dias de hoje.

Quais os temas, os problemas e as hipóteses enunciados pelo autor deste livro de politologia? Ricardo Soares de Oliveira analisa o modo de construção de um Estado em Angola, no período posterior à guerra civil. Período que corresponde, pelo menos no papel e pelas expectativas criadas, ao processo de transição de um regime autoritário para um regime democrático. Num quadro como o da Angola pós-colonial e pós-guerra civil, o autor retoma, assim, a questão da transição – uma das linhas de investigação que mais tem interessado os cientistas políticos do mundo ocidental contemporâneo.

Nas sociedades anteriores à Revolução Francesa, a noção de democracia só existia em ligação à Antiguidade, sendo sinónimo de massas desordenadas. Foi, talvez, Alexis de Tocqueville (1805-1859) o primeiro a esboçar aquela que veio a ser chamada a questão da transição. No seu entender, como poderiam as sociedades europeias, herdeiras de um antigo regime construtor de Estados centralizados e absolutos, articular-se com uma espécie de marcha inevitável dos tempos modernos para a democracia? A resposta dada por Tocqueville escondia uma espécie de nostalgia aristocrática pelos poderes perdidos da nobreza e das pequenas comunidades. Segundo ele, a igualdade e a inevitável cultura de massas favoreciam, apenas, a emergência de Estados totalitários.

Foi no âmbito das teorias da modernização posteriores à Segunda Grande Guerra, que a questão da transição ganhou novos contornos. Isto porque a democracia tendeu a surgir como a condição inevitável para o desenvolvimento económico. Uma correlação da política com a economia, aliás, que alguns procuraram desafiar. Entre outros cientistas políticos, Juan Linz – um dos poucos nomes citados no próprio texto de Soares de Oliveira, num livro depurado, onde não abundam as referências do género – levou mais fundo a questão da transição. Para o fazer, Linz construiu uma tipologia dos regimes autoritários, procurando ver neles uma base capaz de condicionar o próprio processo de transição e o modo como a democracia se podia configurar, segundo vários padrões comparativos (ver Linz, Autoritarismo e Democracia, Livros Horizonte, colecção “Estudos Políticos”, dirigida por Pedro Tavares de Almeida, 2015).

Soares de Oliveira inscreve-se nessa linha de estudos sobre a transição, mas não pretende ser mais um “transitólogo”. Ou seja, o seu livro não desenvolve nenhum estudo tipológico ou comparativo, nem visa aplicar um qualquer modelo. Pelo contrário, ao centrar-se no caso da construção do Estado angolano, aprofunda as potencialidades do inquérito monográfico. As suas sólidas bases conceptuais e teóricas – a ponto de o autor não ter necessidade de as exibir, insista-se, recorrendo ao estilo pretensioso ou escolar da evocação do “modelo teórico” e da acumulação de referências bibliográficas – permitem-lhe centrar-se, de modo empírico e analítico, na realidade histórica que toma por objecto. Conforme confessa o autor, os dados quantitativos de que dispõe, a começar pelos demográficos, são muito escassos. O último censo remonta aos anos de 1970! O mesmo se passa, aliás, com os dados relativos ao número de retornados e, hoje, de expatriados. Por isso, a sua fonte principal – tal como aconteceu, outrora, com Tocqueville – é essencialmente de carácter qualitativo, uma vez que se baseia num leque de centenas de entrevistas, realizadas ao longo de cinco anos e de sucessivas visitas ao terreno.

E como é caracterizado o sistema político angolano actual? Simplificando, em primeiro lugar, será preciso contar com o poder pessoal do Presidente da República. Na entrevista que Pepetela concedeu ao autor, encontra-se talvez a melhor definição do modo de actuação deste último – “o raciocínio próprio do grande xadrezista que ele é” (p. 81). Mas Soares de Oliveira acrescenta-lhe outros elementos: das comissões ad hoc ao domínio total exercido sobre as forças armadas ou “domínio inequívoco sobre a informação e os meios de coerção” (p. 75), sem esquecer que, na ausência de uma administração pública, as funções que lhe caberiam recaem sobre “um sistema paralelo” (p. 77). Tendo-se imposto ao próprio partido, José Eduardo dos Santos tem-se mostrado sempre cuidadoso com o poder do MPLA. Neste sentido, o seu sistema de poder pessoal, por mais absoluto que possa parecer, não se confunde com o das autocracias ao estilo de Mobutu (pp. 74-75), e contrasta com as veleidades totalitárias e violentas do líder carismático da UNITA, Jonas Savimbi.

Em segundo lugar, o sistema político angolano tem, na organização moderna e na gestão tecnocrática dos rendimentos petrolíferos a cargo da Sonangol, criada em 1976, um dos seus principais sustentáculos. O facto de esta reportar directamente à Presidência remonta, como explica Soares de Oliveira, aos tempos de guerra. Da mesma forma que a Sonangol sustentou a máquina militar, à margem do Estado e do MPLA, acabou, em tempos de paz, por vir a fazer o mesmo em relação a um Estado rentista. Mas, do ponto de vista analítico, o certo é que os Estados dependentes de explorações petrolíferas tendem a isolar o respectivo sector, quer da guerra, quer das massas, dispensando formas de contribuição fiscal directa. Logo, as instituições que fazem parte intrínseca do processo de construção do Estado não têm condições para se desenvolver.

Por último, este mesmo sistema político pessoal foi posto ao serviço de uma elite, cujos negócios gravitam essencialmente em torno do Estado. Neste ponto, Soares de Oliveira descreve um padrão de projectos e de investimentos, quase sempre patrocinados pelo Estado em jeito de redistribuição das rendas pela elite existente, que terminam nas mãos de privados e que, em muitos dos casos, redundam em fracasso de um ponto de vista da rentabilidade e da continuidade. O padrão em causa, que tem nos projectos imobiliários e urbanísticos da cidade de Luanda um dos seus melhores exemplos, conta com uma mão de obra de estrangeirados e expatriados, que vêem neles oportunidades de emprego e de enriquecimento.

Mais discutível parece ser a caracterização das origens da mesma elite do MPLA, à cabeça da qual se encontra um número reduzido de generais e de famílias chegadas à Presidência. Soares de Oliveira considera tratar-se de uma elite de crioulos urbanos, cuja genealogia remonta às posições de poder, riqueza e estatuto, derivadas do controlo do tráfico de escravos no Atlântico; o século XX, com a colonização portuguesa, durante pelo menos duas gerações, teria levado a que essa mesma elite crioula se sentisse desapossada; enfim, o seu retorno, enquadrado pelo MPLA, representaria um modo de restauração do poder perdido. Será difícil aceitar esta narrativa, quer sob a forma de uma tradição inventada pela memória dessa mesma elite, quer enquanto processo que corresponda a uma qualquer sucessão de configurações. Talvez seja neste mesmo ponto que mais se fazem sentir os limites de uma transitologia, modelada pela ciência política, que pensa as dimensões históricas como passíveis de ser reduzidas a fases que vão de configuração em configuração...

Porém, as críticas e sugestões que este livro suscita – que deveriam incluir a pesada herança colonial, que teve na Diamang a sua própria Sonangol, bem como uma discussão em relação ao modo como funcionavam quer o Estado, quer a economia coloniais – não poderão beliscar a profundidade analítica de Soares de Oliveira. Muito menos, poderá ser posto em causa o seu modo inteligente de identificar o grande problema que Angola enfrenta no presente. Conforme explica o autor: “parafraseando Juan Linz, a melhor maneira de definir o regime é apresentá-lo mais como uma forma suavizada de autoritarismo, do que como a democracia jovem e parcial que afirma ser” (p. 42). Neste sentido, como irá, então, ocorrer a transição?

Nalgumas áreas, como a da própria regulação ou da criação de normas de um Estado de direito, um tal processo já está em vias de suceder, mesmo que os resultados alcançados não ultrapassem o nível das formalidades e aparências. O mesmo se pode dizer dos planos de modernização, mau grado os inúmeros falhanços e resultados inesperados de acções intencionais. Os sinais de mudança vêm também de grupos de jovens, os quais têm feito ouvir cada vez mais as suas vozes nos últimos dois anos, conforme regista Soares de Oliveira. Acrescente-se, porém, que uma maior atenção podia ter sido dada às elites cultas e informadas, incluindo de académicos, preocupadas com os destinos de Angola, e que não formam um simples bloco.

Contudo, a marginalização a que as massas de pobres têm sido votadas, de que o livro fala de modo consistente, e a debilidade de uma classe média – que possa fazer a ponte entre as elites, com as suas facções, e os subalternos – criam as condições para uma resistência explosiva, com os seus focos de revolta. Será este o modelo de transição possível, seguindo um padrão que articule revolta com revolução? Ou, pelo contrário, os interesses das elites nos negócios – aliados à sua vontade de sobreviver num regime democrático que não lhes seja hostil – vão acabar por se impor, favorecendo uma transição mais pactuada do que revolucionária?

Claro que não são essas as únicas questões que se colocam ao futuro de Angola. Um livro tão rico em perspectivas analíticas como este convida a romper com a simplicidade da antinomia revolta versus transição pactuada. É que existem muito outros factores a ter em conta: obrigará a descida do preço do petróleo a reforçar a máquina fiscal do Estado, desencadeando formas de resistência ainda maiores? Ou será que a diversificação dos investimentos por parte da Sonangol, antecipando tal quebra do preço do petróleo, não criará nenhuma pressão fiscal? Nenhum cientista político pode fazer futurologia, talvez por existirem consequências inesperadas resultantes de uma engenharia social ambiciosa, que deturpa ou se desvia dos objectivos traçados inicialmente. E, no entanto, mesmo que não tenham sido assim colocadas, são as questões relativas à transição colocadas por este livro que mais nos convidam à sua leitura e discussão. Tal como se Tocqueville tivesse ido a Angola...