Torrencial: Alexander Kluge e a Alemanha
O ciclo que decorre na Culturgest, em Lisboa, até dia 16 é a oportunidade para conhecer a obra de um homem torrencial no seu pensamento e na sua produção.
Da primeira geração do cinema alemão moderno, a dos signatários do manifesto de Oberhausen em 1962, Alexander Kluge é por certo um dos mais importantes (com Edgar Reitz, Peter Schamoni e Hans-Jürgen Syberberg, este último não signatário do manifesto) e um dos mais prolíferos, mas também um dos menos conhecidos em Portugal. O ciclo que actualmente decorre na Culturgest até dia 16 (com uma sessão, nesse mesmo dia, em “extensão” na Cinemateca) é uma boa oportunidade para conhecer melhor uma obra sempre intensa, em termos estéticos e políticos, e multifacetada, ou não tivesse sido Kluge um dos cineastas que, dum modo só comparável a Godard (de resto, uma influência mais ou nítida no princípio da obra do alemão), acolheu com particulares vigor e sentido de experimentação todas as novas possibilidades de “corta & cola” trazidas pelo vídeo e depois pelas suas derivações digitais (sendo, de resto, que Kluge é um cultor da “montagem”, no sentido estrito e no sentido lato, como elemento essencial ao seu cinema).
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Da primeira geração do cinema alemão moderno, a dos signatários do manifesto de Oberhausen em 1962, Alexander Kluge é por certo um dos mais importantes (com Edgar Reitz, Peter Schamoni e Hans-Jürgen Syberberg, este último não signatário do manifesto) e um dos mais prolíferos, mas também um dos menos conhecidos em Portugal. O ciclo que actualmente decorre na Culturgest até dia 16 (com uma sessão, nesse mesmo dia, em “extensão” na Cinemateca) é uma boa oportunidade para conhecer melhor uma obra sempre intensa, em termos estéticos e políticos, e multifacetada, ou não tivesse sido Kluge um dos cineastas que, dum modo só comparável a Godard (de resto, uma influência mais ou nítida no princípio da obra do alemão), acolheu com particulares vigor e sentido de experimentação todas as novas possibilidades de “corta & cola” trazidas pelo vídeo e depois pelas suas derivações digitais (sendo, de resto, que Kluge é um cultor da “montagem”, no sentido estrito e no sentido lato, como elemento essencial ao seu cinema).
Acresce que se trata de um homem torrencial no seu pensamento e na sua produção, com obra escrita publicada, tanto na ficção como no ensaio (foi discípulo de Adorno, escreveu sobre o conceito de “esfera pública” e sobre o lugar potencialmente ocupável dentro dela pelo cinema), e é ainda hoje activo na televisão, dirigindo desde há anos um sem-número de programas culturais, a que ele chama a invenção de uma “televisão de autor”, e que pelas amostras que pudemos ver em nada têm a ver com o típico magazine cultural televisivo (antes, pela liberdade, subversão e invenção, se aproximam do célebre “Blob” que Enrico Ghezzi animou durante muitos anos na RAI).
Foi Adorno quem interessou o jovem Kluge pelo cinema. Adorno não se interessava especialmente pelo cinema, não acreditava que as suas propriedades de mass media industrial se adequassem a um tipo de reflexão, política ou filosófica, que fosse útil e independente do poder económico que controlava a produção cinematográfica (justamente aquilo que Kluge, durante toda a sua obra, de modo consciente, tentou contrariar, atraído também pelo potencial impacto popular do cinema). Mas Adorno conhecia Fritz Lang pessoalmente e apresentou-o a Kluge, na ocasião do breve regresso de Lang à Alemanha, no final dos anos 50, para os filmes finais da sua obra - conforme as fontes, Kluge teria sido ou assistente de Lang ou apenas uma visita regular do plateau do “díptico indiano” (O Túmulo Índio e O Tigre de Eschnapur). Em todo o caso, terá sido esse o primeiro contacto activo de Kluge com o cinema, a que rapidamente deu sequência, com um primeiro filme em 1961 (Brutalidade em Pedra, a meias com Peter Schamoni), um impressionante registo de algumas célebres ruínas da arquitectura nazi, por onde é lícito ver alguma influência do Nuit et Brouillard de Resnais, que imediatamente lançava o compromisso essencial da obra de Kluge: a Alemanha, a sua história, o seu presente, a relação entre a sua história e o seu presente.
Nunca pelos caminhos mais óbvios, no entanto, como constatará quem for hoje ver Os Trabalhos Ocasionais de uma Escrava Doméstica (21h30), filme de 1973, história de uma abortadeira em part-time que constitui uma reflexão - distanciada de forma perturbante, como se vê nas cenas de abortos propriamente ditos - sobre o lugar da mulher na sociedade "capitalista" da Alemanha Federal. A divisão da Alemanha, e o "patriotismo" possível, é de resto um tema premente em A Patriota (filme de 1979, dia 12 às 21h30), programado em conjunto com um "fantasma" da História, Fui Guarda-Costas de Hitler (1999(, memórias de um verdadeiro guarda-costas de Hitler debitadas, ou ficcionadas, num registo de falso documentário. O Poder dos Sentimentos, de 1983 (dia 13, 15h30), tem que ser um dos melhores filmes de Kluge, espécie de ensaio melodramático (como o título indicia, sem ironia) decomposto numa miríade de pequenas histórias, dadas como ficção ou, ainda, num registo de falso documentário (incluindo referências à ópera, que será o tema dos filmes que compõem a sessão de dia 14 às 18h30). Esta narração fragmentada, a roçar a lógica do filme de sketches mas tornada mais complexa pela prática da "montagem" segundo Kluge, é ainda o foco de Notícias Diversas, de 1986, (dia 13, 18h30) e de O Ataque do Presente ao Tempo que Resta , de 1985 (que título tão justo quando lido 30 anos depois!). E, finalmente, um dos grandes cometimentos do cinema da última década, mostrado em três sessões entre os dias 14 e 16: (sempre às 21h30): Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, 'O Capital', que parte da intenção do autor do Couraçado Potemkin de realizar uma adaptação cinematográfica do texto do Capital de Marx, quando ainda estava no auge das boas graças de Estaline e do regime soviético em geral, mas que foi gorada. Em quase nove horas, Kluge reflecte sobre os poderes do "Capital" e do cinema no final da primeira década do século XXI (é um filme de 2008), faz "história" de Eisenstein, "história do cinema" portanto, e história do Capital, reflectindo sobre a validade de uma e de outra coisa (o cinema e o marxismo, ou os seus textos fundadores) na época contemporânea, num registo heteróclito e inqualificável, onde tanto contam as imagens de arquivo como as entrevistas com pensadores do calibre de Peter Sloterdijk. Uma das obras máximas do cinema contemporâneo, no entanto raramente vista, numa oportunidade que não se deve perder.