Ser imperfeito
A Periferia Perfeita. Pós-Modernidade na Arquitectura Portuguesa. Anos 1960-1980 é uma história útil à celebração e à fixação institucional - aquilo que nos lembramos, com saudade, de ter visto Jorge Figueira, o autor, desafiar quando chegou ao Porto
Quem não conhece Jorge Figueira? Os leitores do PÚBLICO sabem que é um dos mais prolíficos autores portugueses a escrever sobre arquitectura. Os seus textos são brilhantes, as palavras reverberam ao som de referências cuja sonoridade é capaz de despertar no leitor associações antes improváveis e, depois da leitura, incontornáveis. Para os arquitectos, em particular para a geração que agora chega aos 40 anos, Jorge Figueira foi, com Nuno Grande, quem desempoeirou as páginas dos livros e abriu as cortinas dos auditórios e espaços de debate da arquitectura em Portugal. Ultrapassada a euforia polémica dos anos 80, nos anos 90 a maioria dos arquitectos portugueses fugia do pensamento como o diabo foge da cruz (nem todos), e uma nova geração de críticos teve de desbravar caminho para restabelecer a arquitectura como forma de pensamento. O par Figueira-Grande organizou colóquios, montou exposições, escreveu nos jornais, desdobrou-se em actividades que resgatavam a filiação de uma certa arquitectura portuguesa. Sem eles, a nossa paisagem cultural seria francamente mais pobre. Até a pujança de um Pedro Gadanho, hoje curador do novo Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, só é compreensível como oposição a essa energia reconciliadora. Jorge Figueira pensa bem, fala melhor e escreve a condizer com esse fluxo de pensamento.
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Quem não conhece Jorge Figueira? Os leitores do PÚBLICO sabem que é um dos mais prolíficos autores portugueses a escrever sobre arquitectura. Os seus textos são brilhantes, as palavras reverberam ao som de referências cuja sonoridade é capaz de despertar no leitor associações antes improváveis e, depois da leitura, incontornáveis. Para os arquitectos, em particular para a geração que agora chega aos 40 anos, Jorge Figueira foi, com Nuno Grande, quem desempoeirou as páginas dos livros e abriu as cortinas dos auditórios e espaços de debate da arquitectura em Portugal. Ultrapassada a euforia polémica dos anos 80, nos anos 90 a maioria dos arquitectos portugueses fugia do pensamento como o diabo foge da cruz (nem todos), e uma nova geração de críticos teve de desbravar caminho para restabelecer a arquitectura como forma de pensamento. O par Figueira-Grande organizou colóquios, montou exposições, escreveu nos jornais, desdobrou-se em actividades que resgatavam a filiação de uma certa arquitectura portuguesa. Sem eles, a nossa paisagem cultural seria francamente mais pobre. Até a pujança de um Pedro Gadanho, hoje curador do novo Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, só é compreensível como oposição a essa energia reconciliadora. Jorge Figueira pensa bem, fala melhor e escreve a condizer com esse fluxo de pensamento.
Mas vamos por partes. Figueira nasceu em Vila Real em 1965, era teenager nos anos 80. Quando começou a estudar Arquitectura no Porto, descobriu que a escola era mais severa do que a cintilação pós-moderna que se sentia em Lisboa, para não dizer em Londres ou Manchester. Ouvia The Smiths em primeira mão e deve ter sido essa melancolia a fomentar o seu espírito crítico e acutilância certeira: "Some girls are bigger than others". A sua entrada em cena fez estrondo: como trazer para o Porto — o coração austero da resistência moderna — a frivolidade pós-moderna de Lisboa? Eram outros tempos, em que a escolha de Álvaro Siza para arquitecto da reconstrução do Chiado causou muito mais impressão do que hoje possa ser imaginável.
O livro A Periferia Perfeita, que é o corpo da sua tese de doutoramento defendida na Universidade de Coimbra, continua a insistir na escalpelização desse tempo e dessa dicotomia, propondo uma visão conciliadora da história da arquitectura portuguesa dos anos de 60 aos anos 80. Afinal, não há arquitecto que escape ao espírito do seu tempo e Álvaro Siza não é senão um pós-moderno, a quem a posição periférica garantiu as condições perfeitas para ressurgir nos anos 90 em todo o seu esplendor. Dir-se-ia que Taveira — o pós-modernista — foi com demasiada sede ao pote e, de tão pós-moderno, de tão central nos problemas que enfrentou, se tornou rapidamente pré-pós-moderno, ou pós-pós-moderno, ou des-moderno-pós, enfim, perdeu a graça. A tese de Figueira quer demonstrar as virtudes de ser marginal, não como Hélio Oticica proclamava — seja marginal, seja herói ! — mas sim reclamando que a arquitectura portuguesa, “mesmo não sendo experimentalista ou orientada pela teoria, corre riscos e percorre temperaturas que a distinguem da produção de países mais ricos ou centrais, mas que têm uma maior inércia ou estão em coma high tech”.
Figueira chega a essa conclusão percorrendo a produção portuguesa de aproximadamente três décadas, e divide o livro em duas partes. A segunda parte é um roteiro ilustrado por um conjunto substancial de obras que apresenta sucintamente. Essas obras são discutidas na primeira parte, dividida em dois capítulos, no primeiro dos quais constata que nos anos 60 “é demasiado tarde para ser moderno” e no segundo dos quais explora as múltiplas vertentes da pós-modernidade e nela enquadra uma parte substancial da produção arquitectónica portuguesa.
Para quem está habituado à prosa fluida de Jorge Figueira, o livro é quase inultrapassável: é um livro académico, carregado de citações e referências cruzadas, que pressupõe um conhecimento prévio de quem são algumas das personagens-chave dos debates e das obras citadas. Chama à colação muitos autores e fá-lo demonstrando um saber singular, sem hesitar em convocar as referências mais certeiras e resolver problemas teóricos complexos em frases lapidares. E avança paulatinamente para demonstrar que, afinal, era tudo como já sabíamos, que o moderno foi lá atrás e a pós-modernidade é uma condição inevitável: “O pós-modernismo funciona como a vacina da doença da pós-modernidade. Contém o mesmo vírus; tenta preparar o corpo para resistir; funciona durante uma Primavera. Procura o sentido – ou a cura – mas a doença regressará. Tende, por isso, a ser insatisfatória para os que a experimentam e é irrelevante para os que estão em negação da doença.” O pós-modernismo foi um episódio de algumas juventudes e que o curso inexorável da história se encarregou de deglutir e digerir, apenas com uma breve azia. Portugal, periférico, é o melhor lugar para demonstrar esse curso imparável do tempo e a arquitectura que por aqui se fez é portuguesa. A sua síntese ambiciosa permite considerar a arquitectura portuguesa segundo um novo quadro conceptual e a amplitude do seu trabalho afirma-se como uma autoridade à qual todos os futuros estudos da arquitectura portuguesa dessa (e de outras) épocas terão que, inevitavelmente, se referir.
Só que o livro está longe de ser perfeito, tal como a periferia que retrata não foi, nem será, perfeita. O livro pretende encerrar um capítulo de sincronização ideológica da juventude de Figueira, sincronizar essa irreverência com a eloquência da linhagem em que se quis e foi capaz de inscrever. Figueira constrói um passado perfeito para a sua medida e, através do aparato académico, intimida (ou absorve) qualquer veleidade de experimentar caminhos alternativos. No fundo, constrói uma visão tutelar da história, uma visão moral e unívoca à imagem dos historiadores modernos (Giedion, Pevsner ou Frampton), quando sabemos que nos dias que correm essas visões são pouco úteis para enfrentar os conflitos e desafios do presente. Por isso é uma história útil à celebração e à fixação institucional, precisamente aquilo que nos lembramos, com saudade, de ter visto Figueira desafiar quando chegou ao Porto.