Ingres, o pintor que adorava o corpo das mulheres e todas as suas curvas
Exposição de Ingres reúne no Museu do Prado, em Madrid, 60 obras do pintor francês do século XIX por quem a modernidade se apaixonou. Ele, por sua vez, apaixonou-se pelas mulheres. Até 27 de Março.
Não é preciso ser particularmente sensível à obra de Ingres para sentir que a nova exposição que lhe é dedicada no Museu do Prado, em Madrid, vale a visita. Ter como guia um especialista em pintura francesa do século XIX ajuda a criar esta percepção, mas a pintura deste retratista exímio, “revolucionário compulsivo” e "grande desenhador", bastaria para instalar uma certa inquietude. Porquê? Diz Vincent Pomarède que ela se deve ao facto de haver algo de “dissonante” na maneira como Jean-Auguste-Dominique Ingres olha para a arte, na maneira como lida com ela, desafiando permanentemente o que aprendeu e fugindo às classificações mais comuns, que tendem a fechar os autores em caixas estanques para que seja mais fácil falar sobre eles. “Ingres tem uma formação neoclássica e é capaz de executar obras brilhantes com essa raiz, mas também é capaz de abordar os temas românticos, os trovadorescos... E em todos deixa a sua marca, sem se render aos dogmas de cada um”, explica o comissário científico daquela que é a primeira exposição monográfica em Espanha do autor de A Grande Odalisca e do retrato de O Senhor Bertin. “O que toda a sua carreira demonstra — e ela é muito longa — é que procurou sempre uma maneira muito sua que se traduziu numa obra profundamente original que virá a ter um enorme impacto no seu tempo, mas também no século XX. Uma obra de grande magnetismo, que prende, que atrai, mesmo quando não sabemos explicar como.”
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Não é preciso ser particularmente sensível à obra de Ingres para sentir que a nova exposição que lhe é dedicada no Museu do Prado, em Madrid, vale a visita. Ter como guia um especialista em pintura francesa do século XIX ajuda a criar esta percepção, mas a pintura deste retratista exímio, “revolucionário compulsivo” e "grande desenhador", bastaria para instalar uma certa inquietude. Porquê? Diz Vincent Pomarède que ela se deve ao facto de haver algo de “dissonante” na maneira como Jean-Auguste-Dominique Ingres olha para a arte, na maneira como lida com ela, desafiando permanentemente o que aprendeu e fugindo às classificações mais comuns, que tendem a fechar os autores em caixas estanques para que seja mais fácil falar sobre eles. “Ingres tem uma formação neoclássica e é capaz de executar obras brilhantes com essa raiz, mas também é capaz de abordar os temas românticos, os trovadorescos... E em todos deixa a sua marca, sem se render aos dogmas de cada um”, explica o comissário científico daquela que é a primeira exposição monográfica em Espanha do autor de A Grande Odalisca e do retrato de O Senhor Bertin. “O que toda a sua carreira demonstra — e ela é muito longa — é que procurou sempre uma maneira muito sua que se traduziu numa obra profundamente original que virá a ter um enorme impacto no seu tempo, mas também no século XX. Uma obra de grande magnetismo, que prende, que atrai, mesmo quando não sabemos explicar como.”
Este não é, certamente, o caso de Vincent Pomarède, historiador de arte que dirigiu durante dez anos o departamento de pintura do Louvre, em Paris, museu que, com o de Montauban, pequena localidade onde o artista nasceu e que à data da sua morte recebeu a sua biblioteca, a colecção de arte que reuniu ao longo de 86 anos e tudo o que deixou no atelier, assegura a maior parte dos empréstimos nesta exposição com 60 obras que conta ainda com pinturas da Frick Collection ou do Metropolitan de Nova Iorque. Pomarède é, mais do que um conhecedor, um entusiasta. Diz, sem reservas, que Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780-1867) é do melhor que a França tem para oferecer em pintura e que a sua extensa legião de seguidores — os que aprenderam com ele e os que, depois, o tomaram como referência, de Degas a Modigliani, passando por Gauguin, Matisse e, claro, Picasso — mostra sem esforço até onde foi a sua visão. Sobretudo a do corpo feminino, que nunca deixou de observar demoradamente e de desconstruir com cuidado.
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Essa desconstrução, que depois Picasso vem explorar, à sua maneira, vê-se particularmente em três dos nus mais célebres da carreira deste pintor, todos presentes em Ingres, a exposição: A Grande Odalisca (1814), A Pequena Banhista ou Interior de Um Harém (obra de 1828 que recupera a figura de outra que executou 20 anos antes, A Banhista de Valpinçon, e que haveria de retomar em O Banho Turco) e, finalmente, O Banho Turco (1862). Juntas formam um dos eixos centrais da mostra madrilena, cuja organização é essencialmente cronológica, dividindo em 11 núcleos o percurso deste francês "com mau feitio, por vezes cruel", que começou a sua formação com o pai, escultor, e que encontrou em Jacques-Louis David, figura maior do neoclassicismo, um mestre que, para ele, parece só rivalizar com Rafael, o artista do Renascimento italiano que mais o cativa, mesmo que sejam muitas as referências que faz aos célebres nus de Ticiano (só para dizer que é capaz de fazer à maneira dele, garante Pomarède, nada mais).
“Estas três obras mostram que o corpo feminino era uma das suas obsessões e que é um dos territórios da pintura em que foi mais revolucionário”, explica o comissário frente a A Grande Odalisca, a pintura do Louvre que é uma encomenda da rainha Carolina de Nápoles, irmã de Napoleão Bonaparte, e que provocou grande escândalo no Salão de Paris de 1819.
Desde o início da sua carreira — e A Grande Odalisca é uma obra do começo —, Ingres foi um homem de excessos dentro e fora dos salões, diz Pomarède, identificando os elementos de “extrema originalidade” desta obra em que representa uma jovem mulher num ambiente orientalista, algo muito ao gosto dos românticos que o artista tanto contestava: “Para perceber até que ponto inova no tratamento da mulher, basta olhar a Odalisca e perceber que a posição altamente desconfortável da modelo — vemos esta jovem de costas, com a cabeça voltada para nós, como se acabasse de seguir uma voz que a chamou — é uma espécie de afirmação. Ela não está de frente como nos clássicos. As suas costas nuas permitem-lhe trabalhar este corpo como se fosse uma composição.”
Como uma melodia
Lembra este historiador de arte que Ingres tocava violino e que a música era uma linguagem que dominava, que facilmente transportava para a pintura. “Ele explora o corpo como se fosse uma melodia. É por isso que temos ritmos e rupturas de ritmo, é por isso que há também silêncio neste nu”, acrescenta, chamando a atenção para todo o erotismo que carrega, partindo de um “trabalho das linhas que desafia regras”. Desde logo as anatómicas, lembra Carlos G. Navarro, o comissário executivo, recordando a discussão da época, com muitos a defenderem que era inaceitável que o pintor tivesse acrescentado três vértebras à sua odalisca. “Ele transgride as proporções do corpo para aperfeiçoar a sua busca por uma beleza ideal, distorce o cânone da figura humana, manipula-o e transforma-o de modo a que coincida com a sua visão, que encontre as suas bases na linha e no desenho”, explica este conservador de pintura do Prado. E insistindo nesta fuga ao cânone, renova: “Aqui está ele prestes a inventar uma forma de pintura que terá grande eco na primeira metade do século XX”, acrescenta Pomarède. E a mostrar, a partir da sua formação neoclássica, que também é capaz de explorar o Oriente dos românticos, mas sem seguir o “catecismo” de Eugène Delacroix, personalidade que aliás detestava, garante o conservador do Louvre.
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O que lhe interessa na Odalisca, como em O Banho Turco, que pinta quando tem já 82 anos, é o corpo feminino, a forma como a linha e a luz combinadas podem criar uma mulher com um imenso potencial de sedução. “Ele é seguramente ‘o’ pintor da mulher no século XIX e isso vê-se mesmo quando ela já passou dos 80, quando, ainda muito vigoroso, pinta um Banho em que é muito visível o seu fascínio pela curva, pelos volumes, pela carne. Temos a impressão de que é na pintura que ele expõe verdadeiramente toda a sua sexualidade, toda a sua sensualidade.” Não é de estranhar que as duas obras, continua, sejam absolutamente fundadoras para a arte da primeira metade do século XX. A partir de 1905, Picasso, defende Navarro, é provavelmente o “melhor exemplo” do seu impacto em toda a modernidade. “O facto de Ingres ter criado uma linguagem formal — que prevê a distorção antropomórfica em prol de uma sensualidade subjectiva — e um cânone próprios, acrescidos da musicalidade magnética das suas linhas curvas, tornou-o muito atraente aos olhos dos artistas modernos, que reconheceram o poder da sua independência.”
Esta “independência” é um dos principais valores da obra do pintor francês, defendem os dois comissários, traçando como principal objectivo da exposição “demonstrar” que, ao contrário do que muitos pensam e outros tantos escreveram, Ingres está longe de ser um artista confinado ao academismo. “Não é, nunca foi, um académico frio. É um artista — e um homem — apaixonado”, diz Pomarède.
A invenção no retrato
O retrato, que pode ser visto como o fio condutor de toda a exposição, que inclui ainda obras de temas religiosos (Jesus entre os Doutores), trovadorescos (Paolo e Francesca, saídos do poema de Dante Alighieri) e mitológicos (Ruggiero Salvando Angelica ou o inusitado Édipo e a Esfinge), é uma das áreas em que a sua autonomia e a capacidade de transgredir os limites das classificações da história de arte — neoclassicismo, romantismo, realismo — mais se notam.
Percorrendo a exposição do Prado salta à vista a importância que o retrato assume na sua carreira, marcada por um período de quase 20 anos passado em Itália, onde a influência de Rafael se tornou ainda mais aguda. No seu trabalho como “retratista exímio” está, aliás, toda a tradição clássica e até a flamenga, mesmo que Ingres nunca tenha viajado pelo Norte da Europa. Quer seja em Napoleão I no Seu Trono Imperial, obra de grande aparato em que aparece representado como um imperador romano ou bizantino, explica Navarro, quer seja num retrato como o do pintor François-Marius Granet, em que transparece a proximidade entre artista e modelo (eram amigos), Ingres é um perfeccionista que parte do adquirido para construir algo novo.
“Ele faz evoluir profundamente a arte do retrato, e isto mesmo não gostando de fazer retrato. Este género marca um paradoxo na vida de Ingres — ele, que queria ser um grande pintor de História, acaba sendo um dos maiores retratistas de sempre. Relutante, mas exímio”, defende Pomarède.
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Habituado a pintar homens de poder, como Napoleão ou o duque de Orleans, Ingres torna-se o retratista oficial da burguesia francesa do século XIX. Um dos exemplares mais interessantes dessa actividade que lhe traz grande sucesso comercial é o retrato de Louis-François Bertin (obra conhecida como O Senhor Bertin), jornalista, escritor e um dos primeiros patrões da imprensa de Paris. “Aqui se vê que Ingres compreendeu como ninguém o que é pintar um homem de poder no século XIX. Bertin é um intelectual, dono de um jornal, um homem de ideias, de grande influência.” Ingres representa-o sentado, quando seria expectável que o fizesse de pé, interpelando directamente quem o olha, com as mãos sobre os joelhos, as costas um pouco arqueadas, numa atitude que parece a de um homem habituado ao confronto. “Isto é extremamente inovador e genial — Ingres dá-nos a personalidade do retratado a partir de algo tão imediato como a sua postura.”
Se quando retrata homens procura sobretudo a personalidade, a força, quando o modelo é feminino Ingres parece mais interessado no corpo. “Com as mulheres ele é um retratista completamente diferente, vai atrás da sensualidade, da forma. Ele adora o corpo feminino — até ao fim.” Mesmo nos retratos do fim da sua carreira, como A Condessa de Haussonville ou A Senhora Moitessier, há uma “pulsão erótica”, assegura o conservador do Louvre. “Às vezes demora-se numa mão, num braço. Não é difícil perceber o que o atrai naquela mulher que está a retratar, para onde olhou mais.”
Tal como em O Banho Turco, nestes retratos femininos há uma “certa ideia de prazer que se constrói com as linhas”. Linhas que são uma marca de abstracção, mesmo se há elementos hiper-realistas nos cenários ou na idumentária, como é o caso do turbante da figura que está a tocar no primeiro plano d'O Banho Turco. “O que lhe interessa é trabalhar a luz que cai sobre umas costas nuas... Pintar essas costas transforma-se num tour de force, num fim em si mesmo, o que se traduz numa abstracção." Uma abstracção que convive com a representação quase fotográfica do turbante. "Esta convivência entre o hiper-realismo e as linhas de grande musicalidade das figuras, ingrediente da abstracção para que ele caminha cada vez mais à medida que envelhece, distingue-o dos outros.”
Até ao fim, estas mulheres nuas, às vezes de “perfil perdido”, traduzem um “desejo carnal, físico”, que marca o percurso deste pintor que conhecemos jovem no início da exposição e que deixamos já em fim de vida quando saímos (um retrato e um auto-retrato). Tudo o que faz entre uma obra e outra é de uma “sensualidade elegante, refinada, peculiar, muito francesa”, diz Pomarède. “Ele é um homem que pinta mulheres, e muitas vezes mulheres nuas, com grande musicalidade, sem que elas precisem de qualquer desculpa ou motivo para estar nuas.”
O Ípsilon viajou a convite do Turismo de Espanha e da TAP