O azul está a desaparecer do Bairro Azul
É o único bairro de Lisboa classificado como conjunto urbano de interesse municipal, mas problemas não lhe faltam. O receio da descaracterização social e arquitectónica do Bairro Azul tem motivado moradores e comerciantes para acções de cidadania e protesto.
A Rua Fialho de Almeida, a Rua Ramalho Ortigão e a Avenida Ressano Garcia já não têm as “boutiques chiques” que Ana Alves de Sousa recorda tão vivamente da infância. O Bairro Azul mudou e a coordenadora da comissão de moradores tem noção de que as diferenças são muitas, face à época em que o bairro foi construído e se desenvolveu. “O Bairro Azul era uma marca de prestígio”, afirma.
Veio com 13 anos morar para o histórico bairro lisboeta, um conjunto habitacional que surgiu em pleno período salazarista nos anos 30 com a arte déco como pano de fundo e principal atractivo. A classe média-alta era o público-alvo idealizado para os edifícios do Bairro Azul, que primavam por serem obras de arquitectos portugueses ilustres como Norte Júnior e Cassiano Branco. Hoje com 60 anos, Ana Alves de Sousa sabe a história do sítio onde cresceu e continua a morar de trás para a frente, e usa essa mesma informação como um argumento forte para o que pode ser melhorado.
O percurso na comissão de moradores começou em 2001, numa altura em que se revelava necessário dar voz aos problemas do Bairro Azul: desde o estacionamento abusivo à preservação do património. Informar os restantes moradores e a autarquia não poderia ser uma tarefa adiada por muito mais tempo. “Foram criados pequenos grupos, cada um tratava de um ponto que queríamos mudar no bairro. Depois, procurámos que todos os prédios tivessem um elemento da comissão de moradores para divulgar a informação, sobretudo às pessoas mais velhas”, explica Ana Alves de Sousa.
Da cidadania activa foi um salto para a proposta de classificação do bairro enquanto conjunto urbano de interesse municipal. Os moradores empenharam-se, abriram as portas à Câmara Municipal de Lisboa para visitar as suas habitações e fundamentaram-se em bibliografia e especialistas para não deixar cair o reconhecimento. “Havia imensos livros que falavam do Bairro Azul como um bairro exemplar do ponto de vista arquitectónico, não só pela espectacularidade dos edifícios, mas também pela homogeneidade”, recorda a coordenadora da comissão de moradores. E acrescenta: “É o único bairro de Lisboa onde nunca houve uma demolição”.
João Reis e Carlos Cabaço, do Departamento do Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, acompanharam de perto o processo de classificação. A recolha de informação foi feita pelos dois técnicos em cerca de 90 edifícios do Bairro Azul, pelo que os elementos decorativos e os tipos de materiais e ferragens foram alguns dos focos da sua atenção. “Não se pode classificar levianamente, tem de haver um critério”, justifica João Reis. Ouviram histórias de moradores, como a de um carregamento de madeiras que alegadamente terá vindo num barco de África nos anos 30, para depois ser aproveitado pelos empreiteiros na decoração e sustentabilidade das casas.
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A Rua Fialho de Almeida, a Rua Ramalho Ortigão e a Avenida Ressano Garcia já não têm as “boutiques chiques” que Ana Alves de Sousa recorda tão vivamente da infância. O Bairro Azul mudou e a coordenadora da comissão de moradores tem noção de que as diferenças são muitas, face à época em que o bairro foi construído e se desenvolveu. “O Bairro Azul era uma marca de prestígio”, afirma.
Veio com 13 anos morar para o histórico bairro lisboeta, um conjunto habitacional que surgiu em pleno período salazarista nos anos 30 com a arte déco como pano de fundo e principal atractivo. A classe média-alta era o público-alvo idealizado para os edifícios do Bairro Azul, que primavam por serem obras de arquitectos portugueses ilustres como Norte Júnior e Cassiano Branco. Hoje com 60 anos, Ana Alves de Sousa sabe a história do sítio onde cresceu e continua a morar de trás para a frente, e usa essa mesma informação como um argumento forte para o que pode ser melhorado.
O percurso na comissão de moradores começou em 2001, numa altura em que se revelava necessário dar voz aos problemas do Bairro Azul: desde o estacionamento abusivo à preservação do património. Informar os restantes moradores e a autarquia não poderia ser uma tarefa adiada por muito mais tempo. “Foram criados pequenos grupos, cada um tratava de um ponto que queríamos mudar no bairro. Depois, procurámos que todos os prédios tivessem um elemento da comissão de moradores para divulgar a informação, sobretudo às pessoas mais velhas”, explica Ana Alves de Sousa.
Da cidadania activa foi um salto para a proposta de classificação do bairro enquanto conjunto urbano de interesse municipal. Os moradores empenharam-se, abriram as portas à Câmara Municipal de Lisboa para visitar as suas habitações e fundamentaram-se em bibliografia e especialistas para não deixar cair o reconhecimento. “Havia imensos livros que falavam do Bairro Azul como um bairro exemplar do ponto de vista arquitectónico, não só pela espectacularidade dos edifícios, mas também pela homogeneidade”, recorda a coordenadora da comissão de moradores. E acrescenta: “É o único bairro de Lisboa onde nunca houve uma demolição”.
João Reis e Carlos Cabaço, do Departamento do Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, acompanharam de perto o processo de classificação. A recolha de informação foi feita pelos dois técnicos em cerca de 90 edifícios do Bairro Azul, pelo que os elementos decorativos e os tipos de materiais e ferragens foram alguns dos focos da sua atenção. “Não se pode classificar levianamente, tem de haver um critério”, justifica João Reis. Ouviram histórias de moradores, como a de um carregamento de madeiras que alegadamente terá vindo num barco de África nos anos 30, para depois ser aproveitado pelos empreiteiros na decoração e sustentabilidade das casas.
Medida de salvaguarda
A classificação serviria sobretudo como uma chamada de atenção para a autarquia relativamente aos problemas e às mudanças sociais. Ao mesmo tempo, revelava-se uma oportunidade para salvaguardar o património urbano de Lisboa. “O bairro estava envelhecido no edificado, portanto a classificação era uma forma de protecção”, reconhece Ana Alves de Sousa. Mais do que a arquitectura e o urbanismo, a pressão da comunidade fazia-se também por outras questões como os assaltos a idosos, a inexistência de espaços verdes ou o trânsito caótico nas proximidades de uma superfície comercial.
Em Junho de 2009 chegava a boa nova directamente da Assembleia Municipal de Lisboa: daí em diante, o Bairro Azul seria um bairro classificado e a esperança de que um regulamento pudesse impedir a construção desenfreada e as alterações do património pairava no ar. Actualmente ainda não são conhecidas medidas formalizadas e Ana Alves de Sousa acredita que muitos moradores e comerciantes desconhecem que vivem e trabalham num bairro classificado. “Por isso é que se vêem muitas casas a serem remodeladas, pensam que estão a acrescentar valor no que constroem, mas estão a desvalorizar. É como ter um quadro de um pintor famoso e dar uns retoques, acaba sempre por perder valor, por muito bonito que fique”, desabafa a coordenadora da comissão de moradores.
Manual de boas práticas
O consenso da classificação não existiu na regulamentação do bairro. “O ideal até nem era ser um manual de boas práticas, devia ser um regulamento”, afirma Paulo Ferrero, fundador do movimento Fórum Cidadania Lx. O também morador do Bairro Azul refere que a rejeição de um regulamento por parte da autarquia foi explicada aos moradores pelo carácter proibitivo e impositivo que o documento teria. A definição de um manual de boas práticas revelava-se mais exequível e adequado ao Bairro Azul, porém nenhum dos dois documentos foi colocado em prática. “Já foram adulteradas caixilharias e a cor azul desapareceu em algumas delas. A madeira em muitos edifícios passou a ser alumínio”, salienta Paulo Ferrero. “As pessoas olhavam de fora e viam uma ‘mancha azul’ das persianas, das portas e das caixilharias”, relembra Ana Alves de Sousa.
A cor azul já não é tão abundante no bairro que lhe dá nome e o receio de que algumas alterações no património escapem à supervisão camarária, inquieta muitos dos que lá vivem. As pequenas conquistas foram surgindo na pós-classificação, ainda que Paulo Ferrero admita que “as práticas corrigidas são fruto da denúncia dos moradores”. Desde da criação de uma “zona 30” (faixas de rodagem com velocidade máxima de 30 km/hora) até à plantação de novas árvores após as obras do Metro de Lisboa, as soluções surgiram a cada problema comunicado.
Os técnicos do Departamento do Património Cultural admitem que “foram estudados esboços de regulamentos” para aplicar no bairro classificado, mas não existiram avanços significativos. “Os preceitos podiam tornar-se redundantes num regulamento, porque são aplicados por quem licencia e por quem tem de apreciar os pedidos de alteração”, justifica João Reis. Ambos garantem que a Câmara Municipal de Lisboa já colocou uma série de condicionantes aos proprietários com consequências onerosas, porém relembram: “o interior das habitações não foi objecto de classificação”.
O gabinete do vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, informa que um manual de boas práticas está a ser preparado para o Bairro Azul, contudo não foi possível apurar em que tipo de directrizes e pontos se vai focar ou quando está prevista a sua finalização.
Um bairro para o presente
É a música de Frank Sinatra que sonoriza o pequeno café da Rua Fialho de Almeida, chamado Mousse de Chocolate. Os vitrais no tecto e a cor vermelha do espaço remetem o cliente para os anos 30, exactamente o que Maria Antónia pretendia quando abriu o estabelecimento em 2007. “Disse ao arquitecto que queria a decoração na época do bairro, nada de termolaminados”, afirma.
Os 45 anos de residência no Bairro Azul são suficientes para comprovar que muita coisa mudou e não foi para melhor. Maria Antónia assistiu ao desaparecimento do comércio tradicional para a proliferação das lojas de conveniência abertas até de madrugada. O Mousse de Chocolate tem como vizinho um desses estabelecimentos e não são raros os dias em que de manhã a comerciante encontra lixo na rua. “Criam mau ambiente e acredito que muitas lojas sejam fachadas de imigração”, desabafa.
Tanto Ana Alves de Sousa como Maria Antónia viram várias pessoas abandonar o Bairro Azul, porque já não se identificavam com o sítio onde viveram durante anos. Hoje assiste-se ao aluguer frenético de casas a estudantes Erasmus, para quem as regras de conduta e civismo são praticamente inexistentes, na opinião das duas moradoras. “Não lhes é incutido um horário de recolha de lixo e a falta de informação institucional agrava a situação”, defende Maria Antónia.
A cronologia no Bairro Azul faz-se de um passado prestigiante, em que o “bairro excêntrico” da freguesia das Avenidas Novas era aconchegante para comerciantes e moradores. Hoje, trata-se de “aproveitar o presente e construir o futuro”, como salienta Ana Alves de Sousa, retirar lições do passado e devolver ao Bairro Azul o “charme” apregoado em folhetos turísticos e institucionais.
Texto editado por Ana Fernandes