Esta garganta alberga uma geração
Os Car Seat Headrest lançaram Teens of Style. As resenhas vêm banhadas a baba de críticos fascinados com aquela voz que rebenta em explosões catárticas. Esta garganta alberga uma geração. Os Car Seat Headrest são Will Toledo, 23 anos.
Durante anos, Will Toledo teve uma rotina: conduzia ao longo de Leesburg, Virginia, onde morava com os pais, até ao parque de estacionamento mais próximo, e uma vez aí chegado, desligava o carro, sentava-se no banco de trás, pegava numa guitarra eléctrica e desatava a berrar directamente para o laptop que lhe servia de estúdio de gravação.
Sete anos depois de criar aquele ritual, Toledo pode ser visto, por quem não andou a seguir as suas aventuras automobolísticas, como uma estrela em ascensão de sucesso quase instantâneo: a sua banda, os Car Seat Headrest, acabam de lançar Teens of Style, o disco de estreia e, por toda a Europa, salas esgotam, as entrevistas sucedem-se, as resenhas sobre o álbum vêm banhadas a baba de críticos fascinados com aquela voz que rebenta em explosões catárticas. Um daqueles casos em que uma garganta alberga uma geração.
Mas olhando com um pouco mais de atenção, há qualquer coisa por baixo dessa ideia de sucesso instantâneo, uma contradição. Costumamos equivaler sucesso a bem-estar mas dêem-se ao trabalho de inspeccionar as letras de Toledo e, por exemplo, em Something soon, encontram-se versos sobre partir os queixos ao pai.
Por outro lado, instantâneo é coisa que o seu sucesso não é – na realidade, Teens of Style nem sequer é o disco de estreia dos Car Seat Headrest, apenas o primeiro editado em CD. Para trás ficaram 11 discos lançados na net – um dos quais, Twin Fantasy, descreve uma relação homossexual, que Toledo manteve com uma mulher, que já foi a artista Partydog e hoje é um homem, cujo nome continua a ser Partydog. (E sim, Toledo descreve a relação com uma mulher como homossexual. E os seus fãs gastam muitos kilobytes a discutir os detalhes.) Quanto ao sucesso, o máximo que ele concede é que “com uma boa cama, num bom dia, estando bem-disposto, já [consegue] dormir um bocadinho à noite”.
Problemas de inscrição filial, dúvidas sobre a sexualidade, raiva juvenil, isolamento social, empatia humana em doses mínimas ou excessiva dependência emocional: todo este universo, que se encontra no pára-arranca-injecta-açúcar-explode das canções de Teens of Style, não é, passe a expressão, comum à estrela comum.
Toledo “tinha 18 anos quando [começou] os Car Seat Headrest”, explicava ao telefone com o Ípsilon, durante a digressão europeia. Os Car Seat Headrest, valha a verdade, são ele próprio. “Mas comecei a gravar mais cedo que isso – houve um par de discos anteriores, gravados sob outro nome, que não estão disponíveis. São muito maus”.
Um tipo introvertido
Conversar com Toledo implica tempo. Para que ele se liberte e para lhe ganhar a confiança. Começa monossilábico, acaba a rir-se um bocadinho. Tem 23 anos e parece assustado. Concluímos isto depois de o ouvir dizer “Estou um pouco assustado”. Antes admitira o desconforto perante a exposição pública em meios de massas: “Sei que os jornalistas têm um trabalho para fazer, mas isto é duro para mim. Quando se faz uma entrevista, sei que do outro lado está só uma pessoa, mas às vezes não estou à vontade e tudo parece um pouco estranho. Se estiver bem disposto, a conversa em si já é uma recompensa”. É polido, tem clara facilidade em exprimir-se mas percebe-se a sua renitência: tínhamos acabado de mencionar letras de Twin Fantasy. É natural que tenha procurado esquivar-se.
Toledo é bom nisso. O seu método de gravação de canções na adolescência não se devia ao magnífico som do banco traseiro do carro dos pais, antes à fuga que lhe era possível. “Em termos de privacidade, o carro era o máximo que eu podia conseguir de graça. A casa dos meus pais era pequena e podia ouvir-se tudo pelas paredes”, explica, e lembramo-nos de imediato dele a cantar “Let’s burn this house down” em Something soon, um portento de indie-rock equivalente a uns Strokes com um martelo no lugar da pose, a uns Nirvana sem heroína. A vertigem, no caso das canções de Toledo, não é auto-destrutiva, como em Cobain. É culpa: se Cristo pegasse numa guitarra eléctrica em vez de uma cruz (e a sua Maria Madalena se transformasse em Mário Madaleno), talvez fizesse refrões assim.
Recém-licenciado em Literatura Inglesa (com um minor em Religião) pela Universidade na Virginia, Toledo mudou-se há pouco para Seattle, porque esta “é uma das maiores cidades musicais dos EUA”. Descreve-se como “um tipo introvertido” e tenta afastar de si o foco, para o colocar nas canções: “Não aconteceu muita coisa na minha vida. Não tive muitos amigos. Há muito que só tenho a música”.
O “não tinha muitos amigos” é suficiente para começar o retrato: “Bem, eu tinha alguns amigos da marching band de que fiz parte”, conta: não é propriamente daqueles detalhes cool que conferem patine a uma estrela rock. Foi nessa banda que aprendeu a tocar o trompete que se houve em Teens of Style. “No liceu afastei-me deles e perdi o meu circuito social. Fiquei um pouco sozinho. Estava longe de ser popular”, acrescenta, antes de se deixar de rodeios: “Tenho muita dificuldade em expressar-me pessoalmente”.
A título de curiosidade, Father John Misty estudou na mesma escola de Toledo. Apropriadamente, Toledo lança-lhe veneno sempre que pode. É claro, lendo o Tumblr de Toledo, que este acha Misty um falso, para usar um termo caro a Holden Caufield, a personagem de À Espera no Centeio, de Salinger. Pode até parecer, mas não foi por presunção que usámos referências literárias: o modelo da zanga juvenil continua assente, até aos dias de hoje, em Caufield e no James Dean de Rebel Without a Cause. Juntos inventaram a adolescência.
Em miúdo Toledo teve “aulas de piano e depois [recebeu] uma guitarra”. O seu pai “era uma espécie de músico, tocava piano por divertimento pessoal, mas nunca teve uma carreira”. Se era o mesmo pai a quem a personagem das canções quer dar um pontapé no queixo, é difícil dizer: “O que se passa em Something soon é teenage angst. Essa canção tem muitos anos. Claro que estive zangado com os meus pais, mas não veria nenhuma frase como autobiográfica. Estive zangado com muita gente”. A expressão teenage angst não está ali por acaso: In Utero, o último disco de originais dos Nirvana, heróis de Toledo, começava assim: “Teenage angst has paid off well/ now I'm bored and old”.
O mundo tende a ser cruelzinho – se hoje Toledo é um músico que espia em canções temas como as relações filiais, é bem possível que deva isso aos pais: “Cresci a ouvir coisas antigas, na realidade as mesmas canções dos meus pais, os Beatles, os Beach Boys. Mais tarde dei por mim a ouvir os Who e os Pink Floyd. No liceu comecei a ouvir coisas mais contemporâneas, Nirvana e Neutral Milk Hotel”. E de novo a mesma ideia de que se começou a fazer música foi porque era “a única coisa que [lhe] restava”. Estranho mundo em que um miúdo de 16 anos pensa que já só lhe resta uma coisa.
Mas acredita-se nele porque é essa raiva que se ouve em Teens of Style, um disco de versões de si próprio, ou antes, um disco em que regravou “canções de todas as fases dos álbuns que os CSH lançaram no Bandcamp”. Se Will quis que a sua primeira edição física fosse composta por canções antigas “não foi por querer violar o passado, mas porque queria dar a essas canções uma oportunidade de soarem como [quer] que soem hoje”. Pode alguém ser quem não é? Pode – se for uma canção.
Se vos ocorrer que quem edita 11 discos no Bandcamp em cinco anos tem de ser um sujeito cheio de confiança, ou que se foi sentindo mais confiante à medida que foi avançando, desenganem-se: “O que eu sentia, à medida que ia lançando discos, era que podia fazer 100 discos que ninguém ia ligar nenhuma. Não me sentia de todo confiante. Havia muito mais dúvidas sobre mim mesmo que auto-confiança. Mas não desisti”.
Ainda assim, qualquer coisa mudou ao longo desses discos – e Teens of Style, apesar de homogeneizar as diferenças que havia entre as canções originais, que iam da pop ao ruído passando pela electrónica e hoje são indie-rock clássico – reflecte isso: com o tempo, Toledo foi-se tornando mais melódico, tendo mais cuidado nos arranjos.
“Sempre tive um lado que apreciava arranjos cuidados”, explica, e o que a seguir profere não diz tanto sobre a sua abordagem à música como sobre quem ele era quando começou. “Mas ao início o ponto era ser imediato. Estava a trabalhar muito depressa. Ao fim de algum tempo pude começar com mais arranjos, sim, e agora estou a fazê-lo mais e mais”.
Liricamente também houve mudanças: a teenage-angst deu lugar às relações amorosas; estas serviram de mote (ainda na fase Bandcamp) a temas sobre sair do armário; recentemente assuntos como a idade adulta, tentar ser boa pessoa, tomaram o lugar central.
Uma coisa foi-se mantendo – uma coisa que é executada com primor, em Teens of Style: os gritos nos refrões. Toledo é cândido quanto a este seu dote: “Não foi como se tivesse descoberto de um momento para o outro que podia gritar nas canções. O quer aconteceu é que quando eu ouvia canções de outras pessoas, as partes em que se gritava eram as que me abismavam. O Lennon em Mother. O Cobain”.
O que se segue é pessoal mas acaba por ser um tratado sobre arte e representação (e, caso ainda não tenham dado por ela, estamos claramente perante alguém que vive na dualidade entre expor-se e representar): “Quando comecei a fazer a minha música, gritar era algo que, honestamente, imitei. Demorei a descobrir como fazê-lo por mim. Foram anos até perceber a minha voz, até eu soar autêntico. Uma coisa que descobri é que é preciso praticar para soar autêntico”.
Outra coisa que não mudou: o isolamento. Na universidade o circuito social de Toledo eram miúdos da rádio. “Conheciam a minha música, mas não me ligavam por aí além. Nem gostavam das minhas canções”. Por esta altura da conversa ele já está mais à vontade e deixa sair uma ou outra frase sintomática. Por exemplo: “Não sinto ligação com a maior parte das pessoas”. Ou: “Tento manter poucas amizades, mas significantes. Isto não resulta de uma racionalização, é uma questão de feitio.”
Curiosamente, acha que a sua “introversão ajuda ao sucesso”. “Porque me permitiu fixar-me na composição e não em estabelecer relações sociais”. Uma frase destas pode ser vista como carecendo de empatia humana, sendo que ele está consciente disso e a empatia é dos tema recorrente nas suas canções, que ele qualifica “não como um lugar de fantasia mas de especulação”. Teatro, portanto – ou assim ele quer fazer crer.
Ainda assim, algures neste processo um culto começou a surgir e até certo ponto Toledo alimentou-o. No seu Tumblr os fãs podem escrever-lhe e ele responde. Por vezes põe canções que gosta e explica porquê. Há lugar para os They Might Be Giants, há lugar para I feel love, de Donna Summer. “Não comunico assim tanto no blog, só com um número estrito de pessoas, que me parecem, acima de tudo, boas pessoas. Não há nada de social nisto, são pessoas com quem gosto de conversar”.
Talvez. Mas ele comunica a sua antipatia por Father John Misty, ou o seu medo ao assistir a algumas fitas que os pais o deixavam ver. Tudo muito prosaico: Toledo surge como um rapaz interessante e interessado em arte, articulado, aqui e ali venenoso (em particular quando deixa transladar a sua antipatia por Father John Misty), mas e ainda assim um rapaz, nem mais nem menos que isso. Um rapaz-estrela.
Obviamente que no pequeno jogo narcísico que esta micro-exposição encerrava, Toledo estava “consciente do que dizem sobre [ele]”. Mas agora ele não quer falar sobre isso – isso sendo tudo o que se aproxime de matérias potencialmente inflamáveis (a sua sexualidade, os seus ódios). “As coisas cresceram demasiado para falar sobre isso”, explica, fornecendo depois uma explicação para o seu silêncio: “Ainda não estou preparado para falar de mim. Por isso é que escrevi as canções”, insiste.
Curiosamente, quando estamos a desligar ele quer dizer mais uma coisa: “Há uma coisa que eu não expliquei bem. Eu não sou as minhas canções. Sou mauzinho nas canções. Muito mauzinho. Não sou assim no dia-a-dia. Posso parecer, mas não sou”.
Foram as últimas palavras de Will Toledo, futuro rei do indie-rock e, muito possivelmente, sujeito a caminhar para adulto.