Actor procura actriz para relação íntima
Para questionar a asfixiante vulgarização da intimidade, Elmano Sancho convidou para se lhe juntar no palco a actriz pornográfica Ana Monte-Real. I Can’t Breathe pergunta onde está, afinal, a pornografia nas nossas vidas.
Foram pelo menos 11 as vezes que Eric Garner terá dito “I can’t breathe” aos polícias que, em Julho de 2014, o atiraram ao chão e o imobilizaram ao mesmo tempo que o sufocavam. O uso despropositado da força, filmado por uma testemunha, acabaria por acender mais um rastilho na denúncia da conduta desregrada da polícia norte-americana contra a população negra, e a morte de Garner naquele mesmo passeio de Staten Island (onde foi interpelado por vender cigarros avulsos) levaria à constituição de um forte movimento que tomou a sua frase suplicante como mote para a contestação de um clima social asfixiante. Aconteceu que Elmano Sancho se encontrava nos Estados Unidos nessa altura, em fuga do percurso que vinha fazendo em Portugal, procurando identificar o caminho que poderia vir a desenvolver enquanto actor e encenador – e que começara a experimentar, nesse mesmo ano, com o monólogo Misterman, de Enda Walsh.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Foram pelo menos 11 as vezes que Eric Garner terá dito “I can’t breathe” aos polícias que, em Julho de 2014, o atiraram ao chão e o imobilizaram ao mesmo tempo que o sufocavam. O uso despropositado da força, filmado por uma testemunha, acabaria por acender mais um rastilho na denúncia da conduta desregrada da polícia norte-americana contra a população negra, e a morte de Garner naquele mesmo passeio de Staten Island (onde foi interpelado por vender cigarros avulsos) levaria à constituição de um forte movimento que tomou a sua frase suplicante como mote para a contestação de um clima social asfixiante. Aconteceu que Elmano Sancho se encontrava nos Estados Unidos nessa altura, em fuga do percurso que vinha fazendo em Portugal, procurando identificar o caminho que poderia vir a desenvolver enquanto actor e encenador – e que começara a experimentar, nesse mesmo ano, com o monólogo Misterman, de Enda Walsh.
Nesse gesto de fuga, nessa tentativa de partir para longe a fim de garimpar aquele que poderia ser o seu rumo “único e não uniformizado” no teatro, Elmano Sancho era também movido por uma necessidade de espaço. E a partir da “incapacidade de respirar de um cidadão que foi violentado pela polícia”, começou então a pensar o que significaria essa mesma falta de ar imposta por uma pressão externa, mas pensando-a como proveniente dos meios de comunicação. Ocorreu-lhe, por exemplo, que sempre se sentiu “um pouco violentado” quando é instado a confidenciar algo mais sobre si, sem perceber o interesse que alguém possa ter na sua privacidade. Identificado esse agente de sufocação, quis perceber melhor tal “necessidade exacerbada de tornar tudo visível” e o impulso de sonegar toda a intimidade até não restar qualquer mistério sobre o outro. Foi este pensamento que conduziu à peça I Can’t Breathe, “uma tentativa louca de agarrar o mistério, a ilusão e a poesia, quando a banalização da realidade não permite semear, não permite ter fé, não permite viver, não permite respirar”, diz Elmano ao Ípsilon.
Esse pensamento, na verdade, conduziu-o também à pornografia, pela assunção de que nesse território tudo é feito para ser exposto e revelado. Mas se Elmano Sancho fala de uma sociedade contemporânea assente numa estética do vazio – a piscadela de olho a Era do Vazio, de Lipovetsky, paira por aqui –, é exactamente o vazio que identifica na pornografia. Quando se mostra tudo, o que resta é nada. Foi assim que chegou, após algumas entrevistas, à actriz pornográfica Ana Monte-Real (protagonista de filmes hardcore nacionais como Tavares, o Arquitecto Quebra-Bilhas ou Ana Monte-Real com Molho à Espanhola), com quem partilha a cena em I Can’t Breathe. No palco, Elmano desequilibra desde logo os pratos da balança, assumindo primeiro um papel de inquiridor, de esgravatador da intimidade alheia, alimentando a ideia automática de que qualquer um pode legitimamente invadir a privacidade de alguém que se dedica ao cinema pornográfico, como se partisse desde logo de uma posição de força.
“Achei que a Ana ia estar mais frágil”, confessa Elmano, pensando que a situação inicial, em que todos os olhos ficam presos na figura e nas respostas da actriz, constituiria um momento de extrema agressividade e que a sua vulnerabilidade operaria um efeito perturbador no público. “Mas eu acabei por estar mais frágil do que ela”, reconhece o actor e encenador. Se ele resolve testar o que lhe é permitido ou não fazer – “Posso dar-te um soco?, cuspir-te na cara?, lamber-te?, penetrar-te com objectos?” –, as respostas apenas expõem as defesas naturais daquela que pretende desvendar. “São calos forçados”, justifica Ana Monte-Real. “Com o tempo uma pessoa vai mudando de atitude, vai mudando a maneira como olha para os outros, como age com os outros, vai ganhando uma certa distância.” Daí que, ao contrário que Elmano poderia supor, a actriz argumente que “ele se expõe muito mais”. “O que ele faz é muito mais agressivo e exposto do que estar a fazer uma cena num set de filmagens, em que visto uma roupa, ponho uma maquilhagem e entro na personagem, dentro de um cubo de vidro que inventei para me proteger.”
Ana acredita que o seu corpo na pornografia é como uma simples tela em branco, em que cada espectador projecta aquilo que bem entender. Desde terça-feira, e até dia 12, os dois apresentam I Can’t Breathe na apropriadamente designada Sala de Exposições do Teatro da Politécnica, em Lisboa.
Quanto vale a intimidade
Resgatando também da pornografia a ausência de uma clara linha narrativa, Elmano e Ana vão construindo uma intimidade durante a peça que, em certa medida, é uma intimidade real – uma aproximação entre um homem e uma mulher que não se conheciam antes deste espectáculo e que criaram e continuam a criar uma relação mediada por um texto que nunca sabemos se é ficcional ou confessional. Na sequência de uma obtenção de informação mútua sugerida por Rui Catalão e posta em prática durante uma residência n’O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo, os dois foram desvelando algo sobre o outro e construindo uma relação ambígua em palco, em que o toque é elevado a um plano quase sagrado.
Claro que numa contemporaneidade em que até a intimidade tem valor de mercado, a pornografia a que Elmano e Ana aqui se dedicam responde por outros nomes, tais como “pornografia da violência ou pornografia da morte”. Se o actor descreve em cena as disposições pretendidas para o seu próprio funeral e as anuncia e ensaia com absoluto rigor, é também da sua intimidade que prescinde, num sentido semelhante ao que testemunhamos nas redes sociais – fá-lo voluntariamente, tornando públicas decisões supostamente privadas, deitando fora quaisquer filtros de permeio e moldando como quer ser visto por terceiros. E, aqui, interessa a Elmano que a pornografia, a exposição deliberada de cada um, possa surgir também como pressão social, uma violência de grupo apontada contra o indivíduo e que o obriga a abrir a porta de sua casa e da sua cabeça sob pena de ser ostracizado e visto como traidor de uma prática orgiástica de partilhas de cada centímetro de privacidade.
A derradeira forma de pornografia, no entanto, decorre do próprio espectáculo. E Elmano sabe-o. A encenação de uma intimidade em palco, entre duas pessoas que, possivelmente, não mais voltarão a ver-se durante o resto da vida, inscreve-se também numa exploração consciente da ausência de filtros. “Já pensaste que nunca mais estaremos assim tão próximos?”, perguntam-se. Será, talvez, uma verdade nua e crua.